Uma não tão breve história da ARM (parte 3): um padrão global
E chegamos à terceira e última parte da história da ARM!
Na primeira parte dessa jornada não tão breve, vimos como dois estudantes da Universidade de Cambridge criaram o primeiro processador comercial de arquitetura RISC, o Acorn Risc Machine (ARM1), em 1985.
Na segunda parte, vimos como a Acorn, empresa que havia criado o ARM1, falhou ao tentar explorar comercialmente o novo processador em desktops, e como a oportunidade de fazer os processadores ARM obterem sucesso veio através de uma improvável parceria com a Apple.
Chegou a hora de finalizar essa história e entender como, através da sinergia entre um CEO 1 e uma pequena equipe de 12 engenheiros, a arquitetura ARM se tornou um padrão global em dispositivos portáteis e embarcados.
Um CEO e uma estratégia
A VLSI, empresa americana que fabricava os chips para a Acorn, tinha um acordo para a produção do novo chip ARM. Ela poderia vender os chips ARM para qualquer empresa interessada na tecnologia, não seria uma exclusividade da Acorn. É provável que esse acordo tenha surgido em função da já frágil situação econômica da Acorn.
A Acorn já estava sob comando da Olivetti e havia chegado à conclusão de que, sozinha, não conseguiria investir os recursos necessários para desenvolver a arquitetura ARM. A VLSI estaria disposta a fabricar os chips da Acorn a preços menores, tendo em vista o enorme potencial que vislumbrava na arquitetura ARM.
Os americanos, então, foram ao mercado. Em busca de fabricantes de dispositivos portáteis que pudessem se interessar na arquitetura ARM, encontraram logo de cara a Apple, que nesse momento estava desenvolvendo um certo personal digital assistant chamado Newton. Larry Tesler (aquele mesmo, que trabalhava no Xerox PARC e apresentou a interface gráfica do Alto para Steve Jobs alguns anos antes), então cientista chefe da Apple, se interessou no chip ARM para o Newton.
Mas, como citei na segunda parte dessa história, não fazia sentido a Apple comprar o processador do Newton de um competidor, a Acorn. Daí a ideia da VLSI de formar uma nova empresa para o desenvolvimento dos processadores ARM. A Apple concordou, mas antes de colocar o dinheiro (em torno de US$3 milhões), ela teria que aprovar participar da escolha do CEO da nova empresa. Hermann Hauser, um dos fundadores da Acorn e que naquele momento era diretor de pesquisa na Olivetti, tinha um nome em mente.
Alguns anos atrás, quando a Acorn estava buscando no mercado qual processador usar em seus computadores, Hauser havia visitado uma fábrica da Motorola próxima a Glasgow e conhecido Robin Saxby. Na Motorola, Saxby era um “engenheiro de vendas”, interagia com clientes e com o time técnico da empresa para que desenhassem os chips de acordo aos requisitos dos clientes. A Acorn acabou nunca comprando processadores da Motorola, mas Hauser e Saxby ficaram amigos.
Quando chegou o momento de escolher um CEO para a recém-fundada Arm Ltd., Saxby era o primeiro nome da lista. Em uma entrevista recente, Saxby comentou como, por meio da sua falha em vender os processadores da Motorola para a Acorn, surgiu a maior oportunidade profissional da sua vida — ele não conseguiu vender processadores da Motorola para a Acorn; insatisfeitos com as opções do mercado, Hauser e a Acorn desenvolvem o seu próprio processador (o ARM1); quando surge a Arm Ltd., Saxby é convidado para ser o CEO. Conectando os pontos, como diria Jobs.
Saxby recebeu o telefonema de um headhunter no verão de 1990, falando de uma nova empresa que estava sendo criada na área de processadores, uma espécie de spinoff da Acorn. Ele não era muito fã da Acorn — principalmente depois que havia sido adquirida pela Olivetti —, mas quando ouviu do headhunter que a Apple também seria parte da nova empresa, arregalou os olhos e pensou: “Isso pode ser interessante!”
Uma reunião foi realizada entre Saxby e alguns executivos da Acorn e da Apple, e as ideias para a nova empresa foram discutidas. A Acorn já tinha pensado em trabalhar com licenciamento da tecnologia ARM, só não sabia como fazer isso direito. O foco da reunião foi discutir, em detalhes, como deveria ser o modelo de negócio da nova empresa. Saxby tinha muito claro como o modelo da nova empresa deveria funcionar: ser um padrão global. Era a única chance, pois fabricar era muito caro.
Não fazia sentido fabricar processadores. Além do alto custo, eles estavam muito atrás de gigantes como a Intel. Também não fazia sentido produzir computadores com processadores ARM — a Acorn estava tentando com o Archimedes e não estava dando muito certo. Também não parecia fazer sentido competir com a IBM, que já havia se tornado um padrão mundial em PCs.
Antes de aceitar formalmente o cargo, Saxby se reuniu em um pub com os 12 engenheiros que formariam a equipe da empresa. Sabendo que todos já se conheciam, trabalhavam juntos e tinham talentos extraordinários, Saxby queria, literalmente, a aprovação deles como seu CEO. Em uma conversa franca, entremeada com cerveja gelada, Saxby perguntou aos 12 se eles o queriam como CEO. A resposta foi unânime: “Sim!” Somente depois disso que Saxby respondeu à Apple e à Acorn: “Okay, eu aceito o cargo.”
Em dezembro de 1990, poucas semanas depois da fundação oficial da empresa e da sua chegada como CEO, Saxby reuniu novamente a equipe de 12 pessoas da Arm Ltd. — dessa vez, para uma análise SWOT da empresa. A análise SWOT é uma ferramenta de gestão, que tem como objetivo identificar as forças (strengths), fraquezas (weaknesses), oportunidades (opportunities) e ameaças (threats) da empresa e auxiliar no seu planejamento estratégico a médio e longo prazo. A figura abaixo é uma tradução na análise SWOT original realizada pela empresa e apresentada por Saxby, numa conferência em 2012.
As principais forças da empresa estavam na tecnologia — de baixo custo e que consumia pouca energia — e nas pessoas. Um time qualificado, experiente, flexível e que tinha sido bem-sucedido ao longo do processo de criar e desenvolver a tecnologia. As oportunidades estavam nos portáteis e sistemas embarcados, nos quais o consumo de energia precisava ser pequeno para ser alimentado por baterias. As fabricantes de chips seriam parceiras, fabricando os processadores de acordo com as instruções licenciadas pela Arm Ltd.
Algo que chama a atenção é encontrar entre as ameaças a falta de patente. Talvez seja mais um reflexo dos problemas de gestão e financeiros da Acorn, mas o fato é que a empresa que criou e desenvolveu o primeiro chip ARM do mercado ainda não havia patenteado a sua tecnologia! Pior: a Arm Ltd. estava sendo criada para comercializar essa tecnologia.
As oportunidades identificadas na análise SWOT deixam claro o caminho que precisava ser trilhado pela empresa: dominar os mercados de portáteis e embarcados, e trabalhar em parceria com fabricantes para que cada um produza seus chips de acordo com as instruções ARM. Em resumo, ser um padrão global, como imaginava Saxby.
Acorn e Apple: os únicos clientes
Embora a ideia de ser um padrão global estivesse clara para Saxby e a equipe da Arm Ltd., não seria tão fácil convencer seus sócios/financiadores. No fim das contas, a Apple e a Acorn eram fabricantes de computadores e queriam processadores para os seus produtos.
No primeiro ano de existência da Arm Ltd., metade do time da empresa ficou dedicado a desenvolver um coprocessador matemático, uma FPU (floating-point unit), para o Acorn Archimedes. Não tinha nenhuma relação com o objetivo da Arm Ltd. de licenciar uma tecnologia para sistemas embarcados e portáteis, mas era uma obrigação contratual, uma exigência da Acorn para apoiar a criação da nova empresa.
O FPA10 (floating-pointing accelarator) era vendido como um upgrade para a linha Archimedes. Ele aumentava consideravelmente a performance do computador e, fabricado com a “filosofia ARM” de baixo consumo energético e alta performance, dissipava apenas 250mW. Para softwares específicos que faziam uso da emulação de processador matemático no RISC OS do Archimedes, como CAD, programas de edição de imagem, planilhas, entre outros, os ganhos de performance com o FPA10 podiam chegar a 50 vezes [TXT]. Parece um excelente negócio, não é? Vendeu apenas 500 unidades…
No caso da Apple, o interesse estava no ARM610, um processador de 32 bits e 4KB de cache que seria empregado no Newton. Entretanto, ao contrário do FPA10, o desenvolvimento do ARM610 não seria em vão e não tirou da Arm Ltd. o foco de entrar no mercado de sistemas embarcados.
O ARM610 nada mais era que um system-on-a-chip com um core ARM6 embarcado. Este núcleo ARM6 poderia ser futuramente licenciado a diferentes parceiros, para as mais variadas aplicações. O ARM610 foi fabricado pela GEC Plessey Semiconductors (GPS) e tinha 35 mil transistores; em comparação, o ARM1 tinha 25 mil.
Não é novidade para ninguém que os anos 1990 foram turbulentos na Apple. A falta de visão estratégica de médio e longo prazo na empresa era tão forte que ninguém foi capaz de perceber o potencial dos chips ARM para os seus computadores. Apenas um ano após a criação da Arm Ltd., a Apple se juntou à Motorola e à IBM para criar a iniciativa AIM e desenvolver uma linha de processadores RISC — que, em suma, eram concorrentes aos desenvolvidos pela Arm Ltd.. Os processadores PowerPC equiparam os computadores da Apple de 1994 a 2006. A Apple só enxergava o chip ARM no Newton — apenas uma amostra do comportamento errático e incoerente da Apple que quase faliu a empresa.
Os primeiros anos da Arm Ltd. não foram fáceis, e em vários momentos parecia que a empresa estava fadada à falência. O dinheiro investido pela Apple acabou no primeiro ano — o Newton não durou muito, e nunca teve vendas muito expressivas. A Acorn tentou emplacar o processador ARM em seus desktops, mas nunca conseguiu avançar muito além do mercado educacional. Muitos membros da equipe da Arm Ltd. achavam que era apenas uma questão de tempo para que a empresa deixasse de existir e eles voltassem às suas funções na Acorn.
O que manteve a Arm funcionando nos primeiros anos e evitou a sua falência foi um projeto de pesquisa com a União Europeia, que injetava na empresa £400.000 por ano. Alguns contratos de licenciamentos foram assinados, chips ARM foram comercializados para impressoras, máquinas de fax e modems de internet discada — vendas que ajudavam a pagar as contas, mas estavam longe de ter o volume necessário para o objetivo de se tornar um padrão global.
Era necessário expandir a base de clientes para além dos Estados Unidos e da Europa, licenciar a tecnologia ARM para mais produtos e ser uma empresa global. Nesses primeiros anos de Arm, Saxby passava boa parte do seu tempo em voos intercontinentais entre Inglaterra, EUA, Japão e Coreia, em busca de novos produtos e licenciamentos. Foi do Japão que viria o primeiro produto a aproximar a Arm Ltd. do desejado padrão global.
Sharp: Game Boy Advance
Em 1993, Saxby fez nada mais nada menos que dez viagens ao Japão. Dessa maratona à Ásia, surgiu o terceiro contrato de licenciamento da Arm Ltd, com a Sharp.
A Sharp tinha se envolvido no desenvolvimento do processador para o Apple Newton, e agora avaliava que a tecnologia ARM poderia servir para um outro projeto no qual ela estava trabalhando. Ela estava desenvolvendo, para a Nintendo, a nova geração do Game Boy, que teria pela primeira vez uma tela LCD 2 colorida. Conhecido como Projeto Atlantis, o Game Boy Color teria um processador ARM e seria lançado em meados de 1996.
O Game Boy Color acabou sendo lançado em 1998 sem usar um chip ARM. O processador era uma versão atualizada do velho chip de 8 bits utilizado no Game Boy original, dez anos antes. Um chip ARM viria somente no Game Boy Advance, lançado em 2001, equipado com um processador ARM7.
Game Boy Advance e sua placa-mãe com processador ARM | Fonte: Wikipédia
Thumb: a parte útil no final do seu braço
Apesar de o Game Boy Color não ter sido lançado com um chip ARM, o tempo e esforço dedicado ao projeto não foram em vão. De fato, foi graças ao trabalho de desenvolvimento de um chip para o Game Boy que surgiu aquela que é, segundo o próprio Saxby, a invenção mais importante da história da Arm: o subconjunto de instruções Thumb.
O grande conceito de marketing favorável à arquitetura ARM era a sua eficiência energética e financeira. Ninguém superava o processador ARM em termos de performance/watt e performance/dólar. Porém, essa performance tinha um custo: consumo de memória.
Quando Sophie Wilson e Steve Furber desenvolveram o ARM1, na Acorn Computers, eles estavam pensando em computadores (desktops). Num momento da história em qeu o custo da RAM 3 estava caindo, eles previam que os computadores teriam cada vez mais memória disponível. Com muita RAM disponível para enviar instruções à CPU 4, eles não se preocuparam em reduzir ou otimizar o conjunto de instruções do chip ARM — que era grande e todo em 32 bits.
Partes dessas instruções não precisariam estar em 32 bits, mas como memória não era (ou não deveria) ser um problema, isso também nunca foi um problema. Até surgir o mercado de portáteis e embarcados.
Sistemas portáteis como o Game Boy não dispõem de muita memória ou espaço para o código de instruções nos programas. No Game Boy, por exemplo, os programas (jogos) estavam armazenados em cartuchos, com pouco espaço disponível. Mais memória e espaço de armazenamento implicam em custos substancialmente maiores. Para que a arquitetura ARM fosse competitiva, eles precisavam diminuir ou densificar o código.
A solução viria de um jovem neozelandês estudante de Ciências da Computação na Universidade de Canterbury (na Inglaterra), chamado David Jaggar.
Durante a graduação, Jaggar ficou fascinado pelos novos computadores com processadores RISC que a Acorn havia lançado — tão fascinado que acabou escrevendo sua dissertação de mestrado sobre a arquitetura ARM desenvolvida pela Acorn, indicando falhas e sugerindo correções e aperfeiçoamentos. Ele acabou contratado pela Arm Ltd. em 1991 e desenvolveu um subconjunto de instruções Thumb.
O Thumb incorpora 2 conjuntos de instruções ao chip ARM, um de 16 e outro de 32 bits. Quando um programa é escrito em 16 bits, o chip utiliza somente o conjunto de instruções para 16 bits, necessitando de menos memória e demandando um código mais simples e menor no software. Quando o software é escrito em 32 bits, o Thumb automaticamente aciona o conjunto completo de 32 bits no processador. Com isso, ganha-se espaço (o código Thumb de 16 bits é aproximadamente 40% menor que o de 32 bits) e performance (já que a execução do código em 16 bits é consideravelmente mais rápida que em 32 bits).
De quebra, o Thumb resolveu outro sério problema para a Arm: a falta de patente da sua tecnologia. Como discutimos na segunda parte dessa série, a arquitetura RISC foi desenvolvida em um projeto acadêmico na Universidade de Berkeley. Os resultados estavam publicados. A Acorn Computers e a Arm Ltd. não tinham nenhuma patente do chip ARM, mas o Thumb gerou duas patentes para a Arm Ltd. que garantiram o seu modelo de negócios de licenciamento de tecnologia. Além disso, o Thumb permitiu que o chip ARM fosse competitivo no mercado de portáteis, levando-o ao produto que finalmente o tornaria um padrão global.
Texas Instruments e o Nokia 6110 (primeiro grande produto)
Uma das primeira empresas que Saxby procurou como cliente da Arm foi a Motorola — ela era uma grande fornecedora da Apple, além de ser a líder mundial em telefonia celular. Saxby tentou convencer a empresa do potencial dos chips ARM para os seus telefones, mas não obteve sucesso. A Motorola não se interessou pela tecnologia, uma decisão que lhe custaria caro alguns anos mais tarde.
Saxby então mirou em outra grande empresa americana do setor de semicondutores, a Texas Instruments (TI). Por sua vez, a TI tinha um cliente perfeito para a tecnologia que a Arm estava vendendo: a Nokia.
A empresa finlandesa se interessou pela performance/watt e performance/dólar do chip ARM equipado com o conjunto de instruções Thumb e assinou um acordo de licenciamento com a Arm Ltd. em maio de 1993. O primeiro celular lançado pela Nokia com chip ARM foi o Nokia 8110, o “banana phone” (devido ao seu formato) que ficou conhecido por ser o telefone usado por Neo no primeiro filme da franquia “Matrix”.
Um ano depois, em dezembro de 1997, a Nokia anunciou o celular que mudaria a sua história e a da Arm Ltd. O Nokia 6110, equipado com um chip ARM7TDMI (ARM7 com Thumb), foi um sucesso gigantesco no mundo inteiro, vendendo mais de 3 milhões de unidades em 1998 e fazendo da Nokia a líder do mercado de celulares, desbancando a Motorola.
Para a Arm Ltd., foi um ponto de virada. Estava aberto o caminho para os processadores ARM em dispositivos móveis pelas próximas décadas! A empresa mostrava ao mundo que aquela tecnologia e aquele modelo de negócios eram possíveis.
Samsung
Das exaustivas viagens que Saxby fez à Ásia em 1993, veio o licenciamento para outra gigante da tecnologia, a Samsung. Com a empresa sul-coreana, Saxby conseguiu um acordo diferente e que foi fundamental para a saúde financeira e sobrevivência da Arm Ltd. — a Samsung pagou adiantado US$3 milhões em troca de pagar royalties menores após o lançamento dos produtos.
O acordo foi fundamental para a Arm Ltd. e permitiu dobrar a quantidade de pessoas na equipe — por volta de 1994, o time da empresa tinha passado de 30 para 60 engenheiros. Por incrível que pareça, esse crescimento quase quebrou a Arm Ltd., já que os 30 engenheiros antigos precisavam gastar boa parte do seu tempo treinando os novos. Saxby recordou que foi o momento mais difícil do ponto de vista operacional da empresa [PDF].
StrongARM: o primeiro high performance
No início dos anos 1990, a Digital Equipment Corporation (DEC) também havia desenvolvido o seu próprio chip RISC, o DEC Alpha. Ele era um processador de alto desempenho, alta performance, pensado para computadores de mesa e servidores 5.
Com o surgimento dos dispositivos portáteis, a DEC passou a se interessar em desenvolver uma versão de baixo consumo energético do seu DEC Alpha que pudesse ser aplicado no mercado de portáteis. Os engenheiros da DEC viram que a melhor maneira de fazer isso seria utilizando o conjunto de instruções que a Arm Ltd. estava licenciando. Porém, não era tão simples.
O modelo de negócios da Arm Ltd. era licenciar um core com seu conjuntos de instruções e permitir que quem licenciasse a tecnologia desenhasse o seu próprio system-on-a-chip (SoC) usando o core da Arm. O que a DEC estava interessada era em algo completamente diferente.
A DEC já fabricava os seus cores com instruções RISC. Ela não queria licenciar o core da Arm, e sim projetar um novo core e o seu SoC utilizando apenas o conjunto de instruções licenciado pela Arm Ltd. Trocando em miúdos, a DEC se tornaria uma competidora direta da Arm.
E se o chip da DEC fosse melhor? Mais eficiente? Era um grande desafio para a Arm, porém ao mesmo tempo mais uma oportunidade de seguir expandindo o mercado da sua arquitetura. E Saxby entendeu isso.
A DEC por si só já produzia chips com arquitetura RISC, seria então melhor garantir que fosse uma licenciada da Arm. Assim, com o aval de Saxby, nasceu o StrongARM. Um fato interessante nesse quebra-cabeças é que o primeiro “cliente” que a DEC procurou para o seu futuro chip ARM de alta potência e baixo consumo energético foi justamente a Apple — seria um processador perfeito para o Newton.
O primeiro processador StrongARM foi o SA-110, anunciado em fevereiro de 1996. Ele rodava a 200MHz, significativamente mais rápido que os processadores ARM até então. O primeiro produto a usar o SA-110 foi o Newton MessagePad 2000, lançado em março de 1997.
Ainda em 1997, a DEC se envolveu em uma disputa judicial com a Intel — ela acusava a Intel de infringir as suas patentes no desenvolvimento da linha Pentium. As duas empresas entraram em um acordo em outubro de 1997, e a Intel comprou a parte de processadores da DEC por US$700 milhões. O StrongARM virou um produto da Intel e foi produzido até o início dos anos 2000, quando foi substituído pela linha XScale.
A linha XScale equipou uma série de PDAs (assistente digital pessoal) e PocketPCs na primeira da década de 2000, de diversos fabricantes como BlackBerry, Palm, Dell, Motorola, Sharp, entre outras. Em 2006, após o anúncio da transição da Apple dos processadores PowerPC para Intel e pouco antes do lançamento do primeiro iPhone, a Intel vendeu a sua divisão de processadores XScale para focar nos processadores x86 (computadores pessoais e servidores). Era o fim da aventura da Intel na arquitetura ARM.
Até hoje discute-se como a Intel “perdeu” a oportunidade de dominar o mercado mobile e de telefonia celular, tendo nas mãos os chips StrongARM (e XScale). Como a Intel perdeu o iPhone? Em 1997, quando a Intel comprou a DEC, ela tinha uma receita anual na casa de US$25 bilhões, enquanto a Arm Ltd. fechou 1997 com uma receita na casa de US$45 milhões. A Intel estava com a faca e o queijo na mão, mas não soube tirar proveito!
Há vários fatores que explicam como a Intel pode ter deixado passar essa oportunidade, mas isso é assunto pra um outro artigo. Ainda assim, quem quiser se aprofundar nesse tópico, esse excelente artigo no The Chip Letter aborda o assunto em detalhes, mostrando como a Intel até criou um protótipo de telefone celular usando o seu chip XScale — mas não passou disso.
Conclusão
Quando a Arm Ltd. foi fundada, em dezembro de 1990, ela funcionava em um celeiro abandonado, numa área rural nos arredores de Cambridge. Saxby conseguiu um generoso desconto ao comprar a mobília de escritório, oferecendo ao dono da loja de móveis o direito de fotografar os móveis quando instalados na Arm e usar as imagens no seu catálogo de vendas.
A mesa de reuniões, Saxby ganhou fazendo uma aposta com o dono da loja. A equipe era formada por apenas 12 engenheiros “emprestados” da Acorn. O dinheiro investido pela Apple e VLSI na formação da empresa era suficiente para pouco mais de um ano.
O plano de negócios traçado por Saxby previa que, para conseguir se tornar o desejado “padrão global”, a Arm Ltd. precisava vender 200 milhões de chips até o ano 2000.
Em 2000, a Arm havia vendido 400 milhões de chips. Em 2012, eram 30 bilhões. Em 1998, a Arm ofertou sua ações na bolsa americana (Nasdaq) e na bolsa de Londres. A forte procura pelas ações levou a empresa ao valor de mercado de US$1 bilhão. A Acorn deixou de existir formalmente também em 1998 — foi desmembrada em várias empresas, vendidas separadamente. Era o fim de uma pioneira na indústria dos computadores pessoais e que deixou um legado gigantesco com o chip ARM.
A visão de Saxby de tornar a ARM um padrão global se concretizou amplamente. Processadores ARM são utilizados em carros, sistemas biométricos (leitor/sensor de digitais), smart TVs, impressoras, modems e roteadores, geladeiras… praticamente 100% dos smartphones, smartwatches e tablets do mercado utilizam processadores ARM.
Falando de computadores pessoais, a Arm espera alcançar 50% do mercado até 2029. Estima-se que existam hoje mais de 300 bilhões de dispositivos funcionando com um chip ARM em todas as partes do mundo — tudo isso sem ela fabricar um único chip!
Lembre-se, a Arm licencia tecnologia. Ela não fabrica e nem nunca fabricou um único processador. Em 2016, o conglomerado japonês SoftBank Group comprou a Arm por US$32 bilhões e o Reino Unido perdia o controle de um símbolo nacional. Em 2023, o valor de mercado da Arm já superava os US$50 bilhões.
Sede da Arm em Cambridge (Inglaterra) | Fotos: Office Snapshots
Saxby deixou o comando da Arm em 2007, entregando a empresa com um valor de mercado da ordem de US$10 bilhões. Hoje, ele dedica boa parte do seu tempo em eventos e palestras nas quais ensina empreendedorismo a estudantes, e está sempre de olho em startups promissoras para investir. Continua esquiando (seu hobby preferido) e mais recentemente até se aventurou pela música.
Todos os 12 engenheiros da equipe inicial da Arm estão milionários, graças à política de Saxby de distribuir ações da empresa para a equipe.