Não tem mais jeito; a Apple de Tim Cook dificilmente alcançará o resto do mercado de IA
Quando Steve Jobs ainda comandava o show, ele era praticamente o único rosto público da Apple. Fosse em eventos ou entrevistas, para todos os efeitos, a Apple era Jobs — e Jobs era a Apple 1.
Em eventos da empresa, após zanzar de um lado para o outro do palco apresentando funcionalidades, recursos, produtos ou novidades, Jobs tendia a encerrar cada segmento com as palavras “…and it’s available today“ (“…e ficará disponível a partir de hoje”).
Por mais avançado que aparentasse o recurso, por mais ousada que soasse a promessa, Jobs era ótimo em passar a sua mensagem de modo que sempre parecesse incrível que aquela novidade — que sequer pensávamos ser uma possibilidade até alguns minutos atrás —, faria parte do cotidiano dos usuários da Apple daquela tarde em diante.

Essa era a forma eficiente de Jobs telegrafar a sensação que, se você fosse um usuário da Apple, você teria acesso frequente e imediato a tecnologias bem mais avançadas do que as da concorrência. E sempre funcionava.
Obviamente, a maior parte disso era um enorme teatro. O trabalho de Jobs era justamente dourar a pílula a ponto de fazer qualquer função trivial soar inacreditavelmente avançada — até mesmo quando era somente para se igualar à concorrência. Mas ele fazia isso com maestria. Não à toa, termos como “Stevenote” e “campo de distorção de realidade” datam daquela época.
O contraponto obrigatório
É claro que as coisas nem sempre deram certo. Geralmente, é aqui que entra o contraponto obrigatório que reconta a saga do MobileMe.
Adaptado a partir do .Mac (de 2002) que, por sua vez, foi adaptado a partir do iTools (de 2000), o MobileMe foi anunciado em junho de 2008 durante a keynote de abertura da WWDC daquele ano e lançado no mês seguinte 2.
Apresentado como “O [Microsoft] Exchange para o resto de nós”, o MobileMe prometia sincronizar dados como email, calendário e agenda de contatos na nuvem, para que o usuário pudesse acessá-los a partir de qualquer lugar. Soa tão básico hoje em dia, certo? Definitivamente não era o caso em 2008.
Foi um absoluto desastre. Nada funcionava como prometido e, poucos dias após o lançamento, quando já era óbvio que tudo havia dado irrecuperavelmente errado, Jobs fez o que qualquer bom líder faria: orquestrou uma reação fulminante da porta para dentro; da porta para fora, fez acomodações para aplacar as críticas e a decepção do público.
Dias depois do lançamento fracassado, Jobs convocou a equipe do MobileMe para uma reunião emergencial na qual ele não escondeu sua fúria e vergonha sobre o que a Apple havia colocado no mundo. De quebra, ele mandou um email 3 para todos os funcionários reconhecendo o fracasso, e anunciando uma mudança na liderança do MobileMe. A equipe passaria a ficar sob a supervisão de Eddy Cue que, por sua vez, passaria a responder diretamente ao próprio Jobs.
Se fosse um momento diferente na Apple, com um líder diferente, teríamos absolutamente um blog de atualização de status da Apple Intelligence no momento.
web.archive.org/web/2008081003…
O fim dessa história, todos conhecemos. E usamos até hoje. Menos de um ano depois do seu lançamento catastrófico, o MobileMe foi descontinuado em favor de um novo serviço chamado iCloud. Esse funcionou.
Ninguém quer envergonhar o homem
Se você pulou todo o segmento a respeito do MobileMe, eu não lhe culpo. Eu também teria pulado.
Mas sabe por que essa história é citada com tanta frequência na hora de ilustrar um erro crasso da Apple do passado? Porque situações assim costumavam ser raras.
À época, o fato de Jobs ser praticamente o único rosto público da Apple, significava que ele dava ainda mais credibilidade e pompa a cada novo produto ou função que fossem anunciados. Da mesma forma, o bom desempenho de cada função ou produto refletia positivamente de volta em Jobs, reforçando a sua credibilidade.
E a equipe sabia disso, é claro. Ninguém queria ser responsável por fazer Jobs passar vergonha, fosse no palco ou em produtos nas mãos dos clientes. Acontecia vez ou outra? É claro que sim. Mas nada na escala do MobileMe, e muito menos com a frequência lamentável dos últimos anos.
Pois bem. À medida que Jobs foi adoecendo e perdendo a energia necessária para comandar uma apresentação inteira por conta própria, passou a ser mais comum vermos outros rostos de líderes da Apple introduzindo recursos
Isso, de quebra, ajudaria a aliviar o golpe quando Jobs deixasse definitivamente o comando da Apple. Conforme executivos como Scott Forstall, Bertrand Serlet, Phil Schiller, Eddy Cue, Jony Ive 4 e Craig Federighi passaram a ganhar cada vez mais tempo de palco, o público e o mercado foram se acostumando a associar outros rostos à liderança da empresa.

Gradualmente e de forma bastante planejada, o bastão foi sendo passado, minimizando a chance de parecer que a companhia ficaria à deriva sem Jobs no comando.
O último evento apresentado por Jobs foi o anúncio do iPad 2, em março de 2011. O evento seguinte ocorreu em outubro daquele ano, com o anúncio do iPhone 4S e da Siri. Jobs faleceu menos de 24 horas depois, o que de certa forma é bastante simbólico.
Maçãs e laranjas
Há quem diga que comparar a Apple do passado com a Apple atual é sempre injusto. E essas pessoas geralmente estão certas.
Em 2005, por exemplo, dois anos antes do anúncio do primeiro iPhone, a empresa tinha 14.800 funcionários, possuía lojas em somente 4 países, e a sua operação se limitava basicamente a alguns Macs e iPods, o então chamado Mac OS, o iTunes, a suíte iWork, e alguns periféricos e acessórios como o Cinema Display, o Mighty Mouse e a linha AirPort.
Além disso, os recursos e as funcionalidades que o pequeno (para os padrões de hoje) mercado da Apple demandava não eram nada sequer próximo das expectativas e necessidades variadas que todos temos hoje em dia. Na época, qualquer novidade, por menor ou mais inútil que fosse, era suficiente para encher os olhos e chamar a atenção — o anúncio do Photo Booth (que ocorreu justamente em 2005) que o diga:
Comparado a hoje, com uma Apple de aproximadamente 165.000 funcionários operando no mundo todo e lidando com o desenvolvimento do iOS, do iPadOS, do macOS, do watchOS, do tvOS e do visionOS, junto à sua interação e integração com a App Store, o Apple Arcade, o Apple Books, o Apple Business Essentials, o Apple Business Manager, o Apple Card, o Apple Cash, o Apple Fitness+, o Apple Mail, o Apple Messages for Business, o Apple Music e o Apple Music Classical, o Apple News, a Apple Online Store, o Apple Pay, o Apple Podcasts, o Apple School Manager, o Apple Sports, o Apple TV+, o AppleCare, os audiobooks, o backup do iCloud, o app Bolsa, o app Tempo, a rede Buscar (Find My), o Business Connect, a Carteira, a Conta Apple, a função de Ditado, o FaceTime, as Fotos, o Game Center, o Global Service Exchange, o HomeKit, o iCloud, o iMessage, o inútil Walkie-Talkie, a iTunes Store, o iTunes Match, o iWork, os Lembretes, o Mail Drop, o Mapas, o MLS Season Pass, as Notas, o Private Cloud Compute, o Programa de Compra em Volume, o Projeto Escolar, a Retransmissão Privada do iCloud, a Siri… a coisa é um tanto diferente, certo?
Mas esse é o trabalho. A Apple escolheu entrar e operar em cada um desses mercados. Ela escolheu lançar cada um desses serviços. Ao fazer isso, ela obviamente se comprometeu com a manutenção e a evolução de cada novidade.
Quando um funcionário busca assumir novas responsabilidades dentro de uma empresa, isso significa que ele — de preferência — acredita estar preparado para fazê-lo. Cabe à gerência avaliar as suas habilidades e decidir se a mudança faz sentido.
Se, ao assumir essas responsabilidades, o funcionário começa a deixar os pratos caírem, isso pode indicar que ele ainda não estava pronto. Ou que, apesar de seu talento em outras áreas, talvez ele não seja a pessoa certa para esse novo cargo.
Mas o que acontece quando é a empresa inteira que arrisca crescer além do que ela consegue dar conta, passando a deixar novos pratos caírem com uma frequência maior do que os que ela consegue manter no ar? Em grande parte, isso define a Apple dos últimos anos.
Certamente é o que explica o inaceitável adiamento da Siri mais personalizada, que foi repercutido com precisão cirúrgica no texto “Something Is Rotten in the State of Cupertino” que John Gruber publicou em seu blog Daring Fireball, nesta semana.
Bolas dentro vs. bolas fora
Sim, manter e expandir o sucesso do Mac, do iPhone e do iPad depois de tantos anos de mercado é, em si, uma grande conquista. Do Face ID ao Apple Silicon e, passando pelos recém-anunciados chips C1, a evolução de cada aspecto dos produtos clássicos da Apple ainda é a inveja de muitos concorrentes.
Da mesma forma, o Apple Watch e até mesmo os AirPods mostraram ao mercado que havia esperança para a Apple pós-Jobs. Mas… e depois?
Da inexplicável trapalhada do AirPower à alucinação coletiva do “Projeto Titan”. Do infelizmente irrelevante primeiro Apple Vision Pro, lançado para um mercado inexistente aos comatosos HomePods, a lista de passos em falso e oportunidades perdidas da Apple nos últimos anos certamente parece maior do que a de acertos quando falamos sobre iniciativas ou produtos realmente novos.
O que naturalmente nos leva à Apple Intelligence e à óbvia falta de capacidade (em seu sentido mais literal) da companhia de implementar recursos que, embora tenham tomado todo o mercado de surpresa com o lançamento do ChatGPT, sequer podem ser considerados uma novidade em março de 2025.
De todas as linhas do tempo possíveis, estamos vivendo justamente o pior dos cenários que eu levantei em múltiplos textos à frente da WWDC no ano passado: funcionalidades básicas têm sido liberadas com muito custo e a conta-gotas, à medida que o resto do mercado acelera ainda mais a evolução e a distância em relação ao que a Apple disse há quase um ano que ela pretendia lançar um dia.
Parte disso é impossível não ser atribuída a John Giannandrea, cuja incompetência para desenvolver as funções de IA que o resto do mercado vem adotando eu insinuei pela primeira vez em um texto publicado em julho de 2023.
Tendo vindo da área de inteligência artificial e busca do Google em 2018 e, ocupando o cargo de vice-presidente sênior de aprendizado de máquina e estratégia de IA, é difícil imaginar alguém mais responsável (novamente, no sentido mais literal da palavra) do que ele por tudo o que está acontecendo — ou melhor, que não está acontecendo — com a Apple Intelligence.
Por outro lado, ele não trabalha em um vácuo. Ele responde diretamente a Tim Cook. Ele trabalha diretamente com outros líderes que também respondem diretamente a Cook.
Cada dia que Giannandrea segue no cargo máximo das iniciativas de IA da Apple, é mais um que Cook e outros líderes da empresa sinalizam que estão em paz com o absurdo atraso frente a todo o resto do mercado. Aliás, esqueça o resto mercado. Satisfeitos com o atraso em relação ao que a própria companhia prometeu há quase um ano.
Resumo da ópera
Se a Apple mentiu na WWDC24 sobre o que ela tinha condições de entregar, ou se ela não é mais a empresa que costumava sentir vergonha e reagir vigorosamente quando não entregava o que prometia, tanto faz.
O simples fato de que, há anos, não vemos um “available today” em qualquer apresentação, para qualquer produto ou recurso, já era um sinal de que a companhia perdeu a sede ou vontade de realmente surpreender, ou de recompensar os usuários pela confiança e pela fortuna que custa cada um dos seus produtos.
Talvez seja a complacência que invariavelmente acomete qualquer empresa ou pessoa em uma posição de domínio há bastante tempo; ou talvez seja impossível de, na prática, coordenar o desenvolvimento rápido de novidades de ponta na escala na qual a Apple opera hoje em dia, com a segurança e a privacidade que ela felizmente preconiza. Mas, novamente, esse é o trabalho.
Seja como for, o prognóstico não parece muito positivo. Quando o assunto é IA, mais de dois anos depois do lançamento do ChatGPT e do despertar do planeta (e dos concorrentes) para as possibilidades que isso abriu, a Apple parece cronicamente despreparada para reagir.
No fim das contas, a história da tecnologia é repleta de exemplos de empresas que, apesar de permanecerem gigantes até hoje, perderam irrecuperavelmente algumas oportunidades incríveis ao longo dos anos. É o caso da IBM, que perdeu a era da computação pessoal; da Microsoft, que deixou passar a oportunidade do mobile; da Meta, que não sabe se comprometer com nada e só aponta para onde o vento sopra; da Sony, que não aproveitou a revolução da música digital; da Intel, que entregou a coroa para a ARM de mão beijada; talvez do Google, frente a mecanismos de resposta como a Perplexity ou o Deep Research (do ChatGPT).
No caso da Apple, isso pode ser a IA. Talvez ela nunca consiga alcançar o resto do mercado e cada usuário reagirá a isso da forma que preferir.
Aliás, alternativas não faltam. Muitas delas oferecidas por empresas que passaram a levar o desenvolvimento de IA a sério muito antes da Apple. É o caso da Meta, que contratou o gigante Yann LeCun para liderar a sua divisão de IA em 2013; e do Google, que contratou outro gigante, Geoffrey Hinton, também em 2013. Isso sem contar a OpenAI, a Anthropic, a Mistral e tantas outras, cujo único motivo de existir é justamente desenvolver somente IA, e não IA em conjunto com séries de TV, cartões de crédito, capacetes de realidade virtual ou carregadores de celular por indução.
Seja como for, é decepcionante ver a falta de sangue nos olhos da Apple para adotar o que Gruber bem definiu como “a maior coisa a acontecer na indústria da computação desde avanços anteriores do último século como o mobile, redes sociais e computação na nuvem” — o que, por outro lado, talvez ajude a explicar por que a Siri nunca prestou, com ou sem IA.
Sorte de Jobs que não viveu para ver o que fariam com a empresa dele, e que morreu acreditando que a Apple também lideraria mais essa revolução.