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iPhone made in USA: o delírio de Donald Trump que Tim Cook pode tornar realidade

Existe uma piada famosa sobre Elon Musk, que roda há anos na internet, a qual diz o seguinte:

Elon Musk: *Esmaga o pênis na porta do carro*
Fãs do Musk: Gambito magistral, senhor.

Com uma frequência cada vez maior, essa piada se prova uma profecia. E não só sobre Musk.

No ambiente atual, dentro e fora da internet, uma reação cada vez mais comum é a de defender o seu mascote incondicionalmente, classificando qualquer fato inconveniente ou contra-argumento como tendencioso ou ignorante. Tudo é sempre parte de um grande plano genial do imperador bem-vestido. BE COOL!

Este foi, obviamente, o caso da última semana com todo o teatro de caos que Donald Trump promoveu ao redor do mundo com a política de tarifas que o ChatGPT cuspiu para a sua equipe obediente.

Prólogo

A obsessão de Trump com a China vem de longa data (apesar de não ter sido a primeira). Mas, especialmente ao longo dos últimos anos, Trump alternou entre manifestar inveja pelo poder irrestrito de Xi Jinping e recorrer a um populismo safado quando o assunto é a indústria.

Nos últimos dias, consumido pela missão impossível de tentar fazer o mundo pelo menos fingir que acredita que ele tem mais autoridade e macheza do que Jinping, Trump fez o que faz de melhor: ameaçou, latiu, deu para trás, deixou um estrago enorme no meio do caminho, não cumpriu seu objetivo inicial e… declarou vitória.

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Seus bajuladores, é claro, enxergam diferente. Para eles, ao arregar de seguir em frente com um problema que ele próprio inventou, Trump deu ao mundo a oportunidade de “testemunhar a maior estratégia econômica de um Presidente Americano na história”. Trump “executou brilhantemente a Arte do Acordo”. Trump “mais uma vez, estava certo sobre tudo!” Gambito magistral, senhor.

Em meio à zaragata, sobrou para a Apple. De novo.

Primeiro ato: Mac Pro

Por ser o maior símbolo de tecnologia avançada estadunidense, fruto do cruzamento entre a precisão industrial e manufatura de escala (cuja viabilidade econômica só ocorre na China), a Apple já tinha sido alvo de um grande teatro no primeiro mandato de Trump, com a famigerada fábrica do Mac Pro em Austin, no Texas.

Em 20 de novembro de 2019, Trump tuitou:

Hoje eu abri uma grande fábrica da Apple no Texas que vai trazer empregos bem remunerados de volta à América.

Na realidade, essa fábrica já existia. Ela havia sido inaugurada em 2013 para fabricar o Mac Pro lixeirinha. O problema é que Apple sempre teve dificuldade para encontrar mão de obra especializada suficiente e que estivesse disposta a trabalhar por um salário mínimo.

O resultado foi uma linha de produção capenga, na qual até 70% dos Macs fabricados não atendiam aos requisitos mínimos de qualidade, e cuja rotatividade era alta. Gradualmente, a Apple moveu a produção para a China.

Cook e Trump em fábrica do Mac Pro nos EUA
Tim Cook e Donald Trump visitando a fábrica do Mac Pro, nos EUA.

Após a “inauguração” de 2019, documentada com toda a pompa e circunstância que Tim Cook armou para Trump em troca de isenções fiscais sobre novas tarifas na China (familiar?), a Apple passou a produzir por ali somente as unidades do Mac Pro que seriam vendidas domesticamente. Para o resto do mundo, o Mac Pro seguiu sendo fabricado fora dos EUA.

Mas isso não importava. Para Trump, o importante era a narrativa de que ele, sozinho, havia dobrado a Apple para construir uma (ou melhor, três, sendo que as duas outras nunca se materializaram) fábrica nos EUA. Se, ou o quanto isso era verdade, não era importante. O objetivo era emular vitória e não a conquistar. Gambito magistral, senhor.

Anunciada com alarde durante o primeiro mandato de Trump, essa fábrica da Foxconn em Wisconsin não saiu do papel até hoje. Mas a vitória foi comemorada igual, é claro.

Segundo ato: iPhone

A fixação de Trump por tarifas como ferramenta de extorsão, pela ideia furada do significado de déficit comercial e pelo vitimismo ufanista contra o resto do mundo não é exatamente uma novidade.

Desde os anos 1980, quando falava sobre o Japão da forma como fala atualmente sobre a China, Trump promovia a ideia de usar tarifas como uma arma contra o inimigo da vez e, como único resultado lógico possível, forçar a abertura de fábricas e linhas de produção em solo estadunidense.

Nas últimas semanas, ficou óbvio que não somente este roteiro manteve-se intocado ao longo de quase meio século, mas também, a (falta de) noção de como funciona uma linha de produção.

Isso porque enquanto os conselheiros que Trump condicionou a somente dizerem “sim”, passaram as primeiras semanas do novo mandato vendendo a ideia das tarifas como uma ferramenta que ajudaria a “preencher as fábricas semivazias que agora operam em baixas capacidades em Detroit e na grande área do meio-oeste”, economistas como o Nobel de economia Paul Krugman (que é honesto o suficiente para admitir quando erra) tiveram de chamar a atenção para o óbvio: as coisas não funcionam mais assim, em grande parte graças à automação.

Essa entrevista do Ezra Klein com o Krugman é longa, mas vale ouvir.

Se, nos anos 1980, havia sim a oportunidade de empregar centenas de milhares de pessoas para apertar parafusos em peças que serpenteavam por esteiras transportadoras de galpões quilométricos, boa parte disso passou a ser executado por máquinas neste século.

Na prática, Krugman explica, um renascimento industrial nos EUA elevaria a representatividade desse segmento (que hoje é de 8%) em somente 2,5% do total de empregos no país e, nem de longe, compensaria a queda de 17% na representatividade que ele registrou desde os anos 1970. Isso não tem volta.

Frente à realidade, os avatares de Trump mudaram o discurso. Nos últimos dias, as mitológicas novas fábricas americanas deixaram de simbolizar a promessa da criação infinita de empregos, mas sim uma nova Meca da automação.

Aqui está Howard Lutnick, secretário de comércio de Trump, falando América uma salada América de palavras América sobre o assunto. E sobrou para a Apple. De novo:

“Lembra dos exércitos de milhões e milhões de seres humanos apertando pequenos parafusos para fazer iPhones? Esse tipo de coisa virá para a América. Será automatizado e, os grandes americanos, os trabalhadores especializados da América, vão consertar essas máquinas. Eles vão trabalhar nelas. Eles serão mecânicos. Teremos especialistas em ar-condicionado e ventilação. Teremos eletricistas. A força de trabalho especializada da América. Os nossos americanos, que têm ensino médio, o núcleo da nossa força de trabalho, terá o maior ressurgimento de empregos da história da América para trabalhar nessas fábricas de alta tecnologia, todas as quais virão para a América. É isso que vai construir a próxima geração da América.”

A ideia de ter um iPhone fabricado nos EUA como o símbolo definitivo da vitória industrial contra a China não é nova. Barack Obama sondou Steve Jobs sobre isso em 2010 1, e ela também circulou durante o primeiro mandato de Trump. À época, a fábrica recauchutada do Mac Pro foi suficiente para Cook distraí-lo e render à Apple a isenção fiscal. Gambito magistral, senhor.

Agora, porém, a situação é outra. O assunto de um “iPhone made in the USA” tem circulado com tanta frequência em Washington que muita gente tem partido dessa premissa como algo já confirmado, da mesma forma que os fãs de Musk falam sobre “civilização em Marte” ou sobre “carro autoguiado” como um fato já consumado quando sentem aquela necessidade incontrolável de defendê-lo. Não precisa ser verdade para fingir vitória. Só prometer, já basta.

Perguntada na última terça-feira a respeito desse papo de iPhone feito nos EUA, Karoline Leavitt, porta-voz da Casa Branca, respondeu que “Trump acredita que nós temos a mão de obra, nós temos a força de trabalho, nós temos os recursos para fazer isso. E como você sabe, a Apple investiu US$500 bilhões aqui nos Estados Unidos. Então se a Apple não achasse que os Estados Unidos pudessem fazer isso, ela provavelmente não teria botado esse tanto de grana”.

Vale sempre lembrar que esse investimento de US$500 bilhões da Apple nos EUA não são uma novidade. Eles já iriam acontecer de qualquer jeito, mas Cook sabia que deixar Trump apropriar-se disso como uma vitória seria útil lá na frente. Gambito magistral, senhor.

No dia seguinte à declaração de Leavitt, Trump foi perguntado se consideraria a possibilidade de abrir exceções tarifárias a empresas que estivessem sendo desproporcionalmente afetadas pelo circo que ele havia causado.

Trump disse que sim e, instantaneamente, a Apple — que já havia valorizado 8% graças ao teatro do adiamento das tarifas — valorizou outros 7,5%, já que a pergunta sobre isenção obviamente havia sido a respeito dela. Ela voltou a cair no dia seguinte.

Epílogo

A essa altura, já é óbvio que Trump usará a isca da isenção fiscal para tentar forçar a mão das empresas, assim como fez com o mundo inteiro achando que a China iria ceder. No caso da Apple, isso deve se traduzir em anunciar… qualquer coisa sobre iPhones feitos nos EUA, e que seja suficiente para que Trump possa declarar como uma vitória pessoal. Dado o histórico, não precisa de muito.

Da mesma forma, é óbvio que nada disso está pegando Cook de surpresa. É evidente que as primeiras discussões internas a respeito dessa possibilidade não aconteceram apenas na última semana.

Para a Apple, cuja cadeia de matérias-primas, suprimentos, fornecimento de peças, fabricação e montagem envolve a 3M, a AAC Acoustic Technologies Holdings Incorporated, a Advanced Semiconductor Engineering Technology Holding Co., Ltd., a AGC Incorporated, a AKM Meadville Electronics (Xiamen) Company Limited, a Alpha and Omega Semiconductor Limited, a Alps Alpine Company Limited, a Amkor Technology Incorporated, a Amphenol Corporation, a ams-OSRAM AG, a Analog Devices Incorporated, a AT & S Austria Technologie & Systemtechnik AG, a Baoji Titanium Industry Co., Ltd., a Baotou Inst Magnetic New Materials Co., Ltd., a Beijing Zhong Ke San Huan High-Tech Co., Ltd., a Bichamp Cutting Technology (Hunan) Co., Ltd., a Biel Crystal Manufactory Limited, a BOE Technology Group Company Limited, a Boyd Corporation, a Broadcom Limited, a Bumchun Precision Company Limited, a BYD Company Limited, a Career Technology (Mfg.) Company Limited, a Catcher Technology Company Limited, a Cathay Tat Ming (HK) Company Limited, a Cheng Uei Precision Industry Company Limited (Foxlink), a Chengdu Homin Technology Company Limited, a China Circuit Technology (Shantou) Corporation, a Cirrus Logic Incorporated, a CN Innovations Holdings Limited, a Compal Electronics Incorporated, a Compeq Manufacturing Company Limited, a Corning Incorporated, a Cosmosupplylab Limited, a Cowell E Holdings Incorporated, a Crystal-Optech Co., Ltd., a CymMetrik Enterprise Company Limited, a Delta Electronics Incorporated, a Derkwoo Electronics Company Limited, a Dexerials Corporation, a Diodes Incorporated, a Dynapack International Technology Corporation, a Flex Limited, a Flexium Interconnect Incorporated, a Fujian Nanping Aluminium Company Limited, a Fujikura Limited, a General Interface Solution Limited, a Genius Electronic Optical Company Limited, a GigaDevice Semiconductor Incorporated, a Global Lighting Technologies, a GoerTek Incorporated, a Golden Arrow Printing Company Limited, a Hama Naka Shoukin Industry Company Limited, a Henkel AG & Company, KGaA, a Hi-P International Limited, a Hirose Electric Company Limited, a Hon Hai Precision Industry Company Limited (Foxconn), a IDEMIA Group, a INB Electronics Limited, a Infineon Technologies AG, a Intel Corporation, a Interplex Holdings Pte. Ltd., a J.Pond Industry (Dongguan) Company Limited, a Jabil Incorporated, a Japan Aviation Electronics Industry Limited, a Japan Display Incorporated, a JCET Group Company Limited, a Jiangsu Kangrui New Material Technology Co.,Ltd., a Jiuquan Iron & Steel (Group) Co., Ltd., a Jones Tech PLC, a JX Nippon Mining & Metals Corporation (Eneos Holding), a Kam Kiu Aluminium Products Group Limited, a Keiwa Inc., a Kioxia Holdings Corporation, a Knowles Corporation, a Kunshan Kersen Science and Technology Company Limited, a Kyocera Corporation, a Largan Precision Company Limited, a Lens Technology Company Limited, a LG Energy Solution, a LG Display Company Limited, a LG Innotek Company Limited, a Lingyi iTech (Guangdong) Company, a Lite-On Technology Corporation, a Luen Fung Group, a Lumentum Holdings Incorporated, a Lumileds Holding B.V., a Luxshare Precision Industry Company Limited, a LX Semicon Co., Ltd., a Marian Incorporated, a MicroChip Technology Incorporated, a Micron Technology Incorporated, a MinebeaMitsumi Incorporated, a Molex Incorporated, a Murata Manufacturing Company Limited, a Nanofilm Technologies International Private Limited, a Nan Ya PCB Corporation, a Nichia Corporation, a Nidec Corporation, a Nissha Company Limited, a Nitto Denko Corporation, a NOK Corporation, a Nordic Semiconductor ASA, a NXP Semiconductors N.V., a ON Semiconductor Corporation, a Paishing Technology Company, a Parade Technologies Limited, a Pegatron Corporation, a Phone In Mag-Electronics Company Limited, a Pioneer Material Precision Tech Company Limited, a Platinum Optics Technology Incorporated, a POSCO International, a Power Integrations Incorporated, a Primax Electronics Limited, a Qorvo Incorporated, a Quadrant Solutions, a Qualcomm Incorporated, a Quanta Computer Incorporated, a R.R. Donnelley and Sons Company, a Radiant Opto-Electronics Corporation, a Renesas Electronics Corporation, a Robert Bosch GmbH, a Rohm Company Limited, a SABIC – Saudi Arabian Oil Company, a Samsung Electro-Mechanics Company Limited, a Samsung Electronics Company Limited, a Samsung SDI Company Limited, a San’an Optoelectronics Co., Ltd., a Shandong Innovation Group, a Shanghai Industrial Holdings Limited, a Sharp Corporation, a Shenzhen BSC technology Co., Ltd., a Shenzhen Desay Battery Technology Company Limited, a Shenzhen Everwin Precision Technology Company Limited, a Shenzhen Forceblack Technology Co., Ltd, a Shenzhen Linkconn Electronics Co., Ltd., a Shenzhen Sunway Communication Company Limited, a Shenzhen YUTO Packaging Technology Company Limited, a Shin Zu Shing Company Limited, a Simplo Technology Company Limited, a SK hynix Incorporated, a Skyworks Solutions Incorporated, a Solvay S.A., a Sony Corporation, a STMicroelectronics N.V., a Stora Enso Oyj, a Sumida Corporation, a Sumitomo Chemical Company Limited, a Sumitomo Electric Industries Limited, a Sunny Optical Technology Co., Ltd., a Sunrex Technology Corporation, a Sunwoda Electronic Company Limited, a Suzhou Anjie Technology Company Limited, a Suzhou Dongshan Precision Manufacturing Company Limited, a Suzhou Zhongjiemai Panel Industry Technology Company Limited, a Synaptics Incorporated, a Taiwan Hodaka Technology Company Limited, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company Limited, a Taiwan Surface Mounting Technology Corporation, a Taiyo Yuden Company Limited, a Tata Electronics, a TDK Corporation, a Texas Instruments Incorporated, a Tongda Group Holdings Limited, a Toyoda Gosei Co., Limited, a TPK Holding Company Limited, a Trinseo S.A., a Tripod Technology Corporation, a Tsujiden Company Limited, a TXC Corporation, a Unimicron Technology Corporation, a Unisteel Technology Limited (SFS Group), a Unitech Printed Circuit Board Corporation, a United Test and Assembly Center Limited, a VARTA Microbattery GmbH, a Viavi Solutions Incorporated, a Western Digital Corporation, a Winbond Electronics Corporation, a Wingtech Technology Co., Ltd., a Wistron Corporation, a Yageo Corporation, a Young Poong Corporation, a Zhejiang Tony Electronic Co., Ltd., a Zhen Ding Technology Holding Limited, a Zhenghe Group e a Zhuhai CosMX Battery Co., Ltd. na Áustria, na Bélgica, no Camboja, na China continental, na Costa Rica, na República Tcheca, na França, na Alemanha, na Índia, na Indonésia, na Irlanda, em Israel, na Itália, no Japão, na Malásia, em Malta, no México, no Marrocos, nos Países Baixos, nas Filipinas, em Portugal, em Singapura, na Coreia do Sul, em Taiwan, na Tailândia, no Reino Unido e no Vietnã — além, é claro, dos EUA — é absolutamente impossível mover toda a produção e a fabricação de iPhones para casa 2.

Por outro lado, ela não precisará fazer nada isso.

Fabricação e montagem são coisas bem diferentes. Porém, na hora de fingir vitória, dará na mesma. Para a sorte da Apple, provavelmente bastará que ela apenas monte nos EUA somente uma variante de um modelo de iPhone, voltado somente ao mercado doméstico — o que, mesmo assim, será um esforço hercúleo, provavelmente inviável de ser feito com rapidez, e cujo custo desproporcional ela terá de engolir —, para que Trump possa, mais uma vez, criar um book fotográfico e dizer que agora “o iPhone é fabricado nos EUA”.

No fim, a Apple montará esse iPhone em troca da isenção para o resto da sua operação, Trump montará a sua narrativa em troca da ilusão de domínio que ele tanto persegue, e todos poderão dizer que saíram ganhando. Exceto os americanos, que seguirão desempregados.

Gambito magistral, senhor.

Notas de rodapé

1    Como ambos sabiam fazer contas, foi fácil de explicar o problema e seguir em frente.
2    E muito menos, no decorrer dos próximos (longos) 3 anos e 8 meses
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