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Fim do Ai Pin: na disputa pelo futuro da tecnologia, o velho smartphone segue invicto

Imagine poder voltar até mais ou menos a metade das décadas de 1980 ou 1990, e dizer a um entusiasta de tecnologia ou fã de ficção científica que, no futuro, a humanidade terá inventado um computador de lapela do tamanho de um Tamagotchi que será capaz de projetar uma interface interativa na palma da mão do usuário.

Imagine poder contar que será possível conversar em linguagem natural com esse computador, e que ele será munido de uma câmera capaz de enxergar, identificar e interpretar o mundo ao seu redor. Mais do que isso, ele funcionará conectado permanentemente a um catálogo remoto infinito contendo toda a sabedoria (e a burrice) que a humanidade já produziu, além de poder fazer qualquer consulta, responder a qualquer pergunta ou cumprir uma infinidade de comandos em poucos segundos.

Agora, imagine dizer a esse fã que a reação da humanidade a tal dispositivo será um enorme e desinteressado bocejo, seguido de um firme dedo do meio em riste. E que, para embolar ainda mais a história, a humanidade não estará de todo errada.

Famosa cena “Hello, Computer?”, de “Star Trek IV: The Voyage Home” (1986), brinca com a ideia de que, para uma civilização avançada, o teclado e o mouse seriam formas ultrapassadas de interagir com o computador frente à voz em linguagem natural.

Passado e presente

No texto “O inútil Humane Ai Pin é o melhor produto de 2023”, de novembro de 2023, eu elogiei a intenção da Humane de investigar um novo formato para tirar proveito das possibilidades que vêm surgindo com o avanço da tecnologia nos últimos anos, ao mesmo tempo em que explorei como a realidade do que a empresa havia de fato lançado estava muito aquém da promessa que ela havia feito 1.

O Ai Pin é terrível em todos os aspectos. A Humane criou uma expectativa insustentável, fez um anúncio estabanado, deu informações erradas na demonstração e, para piorar, ele custa caro demais.

Dito isso, uma coisa também é certa: o Ai Pin é rascunho de um futuro muito promissor e empolgante do mundo da tecnologia. Muito mais, inclusive, do que a enésima versão de um iPhone.

Cá estamos, pouco mais de um ano depois. Com a notícia recente da descontinuação do Ai Pin e da venda de partes da Humane para a HP por “apenas” US$116 milhões 2, eu devo admitir que… não retiro nada do que disse.

Aliás, em comparação a novembro de 2023, acredito que atualmente haja ainda mais potencial para explorar novos produtos, com experiências e tecnologias complementares ao uso do smartphone, especialmente as apoiadas no que eu venho chamando de computação contextual.

Revista TIME inclui o Humane Ai Pin na lista das “Melhores Invenções de 2023”.

Futuro

A evolução de algumas tecnologias derivadas do aprendizado de máquina vem acontecendo em um ritmo praticamente inédito. Em novembro de 2023, por exemplo, modelos de raciocínio e visão computacional em tempo real ainda não existiam de uma forma tão ampla e acessível quanto eles se tornaram apenas nas últimas semanas.

De lá para cá, o processo de inferência desses modelos ficou mais eficiente, rápido, barato e objetivamente melhor. A qualidade da inferência ficou mais confiável. Já a tecnologia de visão computacional em tempo real tornou-se uma realidade gratuita e quase corriqueira em apps como ChatGPT, Google Gemini, a iminente inteligência visual (visual intelligence) da Apple, dentre outros. Ainda assim, está evidente para todos que acompanhamos essas tecnologias de perto que esse é apenas o começo. E isso é sensacional!

O que não significa que o smartphone tenha que morrer. Ou ser deixado de lado. Ou ser substituído. Isso é óbvio. Esse foi um dos múltiplos erros da Humane — e também da startup rabbit, como eu explorei nos textos “O rabbit r1 não é o futuro, mas é parte do caminho”, “Humane Ai Pin, rabbit r1 e o vaporware da era pós-Kickstarter” e “O rabbit r1 mostra exatamente o que esperar de um iPhone com IA”.

Aliás, eu sinceramente duvido que até mesmo quem trabalhava na Humane tenha acreditado por um segundo que o Ai Pin realmente teria qualquer chance de substituir o smartphone, como a liderança da empresa cravou desde o princípio que era o seu objetivo.

Substituir o smartphone não é uma tarefa fácil. Na realidade, é uma tarefa praticamente impossível. Nenhum outro produto na história da humanidade conseguiu assumir e centralizar, de forma tão natural, cômoda e portátil, tantos papéis diferentes.

Coisas que o smartphone substituiu.

A essa altura, todo mundo já deve ter se deparado com alguma versão da imagem acima, ilustrando quantos objetos foram absorvidos ou substituídos pelo smartphone — e olha que essa acima é de 2015! Com quase 20 anos de iPhone, isso é algo sobre o qual sequer pensamos mais a respeito, apesar de ele seguir evoluindo e aposentando dispositivos. É o caso recente de algumas câmeras de filmagem profissional, por exemplo.

Mas isso não quer dizer que o smartphone seja o ponto final da evolução da tecnologia móvel de consumo — eu, pelo menos, definitivamente espero que não. Isso porque, por mais que ele seja o formato ideal para substituir múltiplas tecnologias, ele nunca será o formato ideal para viabilizar todas elas. E em algumas situações, há espaço para mais. Muito mais.

Tomemos o Apple Watch como exemplo. Com um funcionamento complementar ao do iPhone, ele assumiu — de uma forma muito mais eficiente — alguns papéis que eram perfeitamente possíveis de serem cumpridos no iPhone, incluindo a detecção da frequência cardíaca.

Com o tempo, novas tecnologias e aplicações foram sendo desenvolvidas para ele e, essas sim, dificilmente poderiam ter sido desenvolvidas para o iPhone. Falo, por exemplo, da detecção de fibrilação atrial — que por sinal, potencialmente já salvou a minha vida.

Em abril de 2020, eu acordei com esta mensagem.

O mesmo acontece com produtos como óculos e fones de ouvido munidos de visão computacional, e LLMs. Eles poderão entregar benefícios que, novamente, um iPhone também já pode entregar. Porém, no caso do iPhone, o atrito acaba sendo maior, e seu uso menos natural. É a diferença entre ter que tirar o telefone do bolso e apontar a câmera para um objeto ou estar usando uma câmera nos óculos/fones de ouvido que já saibam exatamente para onde você está olhando.

Neste exemplo, esses acessórios são o veículo ideal para convergir essas tecnologias, exatamente da mesma forma que o smartphone foi o veículo ideal para convergir tantas outras. Não é um jogo de soma zero. E ainda bem que não é.

Resumo da ópera

Se existe uma constante na história da tecnologia, é a seguinte: nada está realmente pronto ou finalizado. Nunca. Considerando os iPhones de hoje, o primeiro iPhone era um brinquedo. Considerando os carros de hoje, o Model A da Ford era uma piada. Considerando os satélites de hoje, o Sputnik não passava de uma bola de metal glorificada orbitando sobre as nossas cabeças.

Mas todos eles marcaram época e sinalizaram o início bastante rudimentar de algo muito maior que estava por vir. Aliás, esse é exatamente o caso Apple Vision Pro, como eu comentei aqui e aqui.

Mas há uma diferença brutal entre lançar algo rudimentar 3 e algo pela metade. No caso do Ai Pin, definitivamente foi a segunda alternativa. Se muito.

Na pressa de chegar antes para aproveitar sozinha os benefícios possibilitados pela IA generativa, a Humane sequer parou para entender (ou implementar) a verdadeira melhor forma de fazer isso. Para piorar, ela própria sabia que era inevitável que essas mesmas tecnologias seriam adotadas por telefones e por outros acessórios, e isso acelerou ainda mais o lançamento do Ai Pin que, novamente, como eu já havia escrito em novembro de 2023, estava fadado ao fracasso desde o início. Zero surpresa.

Mas isso não elimina o potencial de novas tecnologias, e muito menos a validade — e a necessidade! — de explorar novas ideias para tirar o máximo proveito dessas novas tecnologias, com ou sem relação com o smartphone.

Até agora, o smartphone segue invicto como o principal dispositivo para absorver e disponibilizar novas tecnologias. E isso é ótimo. Mas nem sempre será assim. Mais cedo ou mais tarde, alguém cravará um novo formato certo, no momento certo, para explorar todo o potencial de uma nova tecnologia.

Por uma série de motivos, esse não foi o caso do Ai Pin, e isso é uma pena. Dito isso, que venha o próximo!

Notas de rodapé

1    Já dizia F. Scott Fitzgerald: “O teste de uma inteligência de primeira ordem é a capacidade de manter duas ideias opostas na mente ao mesmo tempo e ainda manter a capacidade de funcionar”.
2    Em vez do hilário US$1 bilhão que ela vinha pedindo no ano passado.
3    Como diz Reed Hoffmann: “Se o seu lançamento inicial não lhe deu vergonha, você provavelmente lançou tarde demais.”
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