Está na hora de a Apple abrir o iPhone
Por muito tempo, eu concordei 100% com a premissa de que, já que a Apple havia se dedicado a investir os tubos para desenvolver um produto como o iPhone e toda a estrutura que o acompanha, era natural que ela colhesse os frutos disso como melhor lhe conviesse. O iPhone é dela — logo, ela dita as regras. Mesma coisa para o Android, por sinal.
Sob essa lógica, cada desenvolvedor ou fabricante de acessório deveria apenas agradecer por poder usar o produto de uma outra empresa para levar seu próprio trabalho a milhões de pessoas ao redor do mundo. Sem smartphone, sem trabalho. Certo?
Pois bem. Ao longo dos últimos anos, tenho percebido que talvez essa não seja a única forma de se olhar para essa situação.
E não falo apenas sobre as regras da App Store ou o valor da comissão que a Apple cobra. Falo sobre a importância que o smartphone, como categoria de produto, acumulou no cotidiano da humanidade e, no caso específico do iPhone (e, mais especificamente ainda, do iOS), sobre como a exploração de todo o potencial que ele oferece tem sido prejudicada ou pelo menos atrasada pela própria empresa.
Com o fracasso e a descontinuação do Humane Ai Pin, passei os últimos dias pensando o seguinte: o que um novo produto precisa fazer para ter alguma chance dar certo em um segmento no qual tanto clientes quanto fabricantes estão igualmente em desvantagem na relação com a Apple e o Google?
E que fique absolutamente claro: a lista de tiros no pé que a Humane deu e que contribuíram para o fracasso do Ai Pin é enorme. Ele esquentava demais 1, custava caro demais 2, sua bateria durava pouco 3, sua oferta de apps era quase inexistente 4, sua utilidade era bastante limitada 5, era estranho para ser usado normalmente em público 6, exigia uma assinatura, requeria um novo número telefônico de uma operadora específica e, obviamente, nunca teve a menor chance de substituir o celular como prometido.
Ainda assim, imagine que nos próximos meses surja uma startup que desenvolva um produto que acerte no design, no preço, no modelo de negócio, no equilíbrio entre forma e função, e que verdadeiramente identifique um jeito novo, natural e — principalmente — útil de facilitar a vida do usuário para algumas tarefas que hoje são executadas com um certo atrito (ou que são impossíveis de se executar) no smartphone.
Sabe o que aconteceria com esse produto? Muito provavelmente ele também fracassaria.
Parquinho fechado
No podcast Upgrade, o jornalista Jason Snell — que acompanha a Apple há mais tempo do que muitos leitores do MacMagazine estão vivos — costuma falar sobre como Steve Jobs desprezava fabricantes de acessórios, e sobre como a empresa perpetua essa atitude até hoje.
Em março do ano passado, Snell argumentou o seguinte, no contexto da má vontade da companhia para cumprir as determinações do lei europeia de mercados digitais (Digital Markets Act, ou DMA):
Isso mostra o quão mesquinha e vingativa a Apple pode ser. […] (Essa atitude) é compreensível até certo ponto, quando você está lutando pela própria vida […]. Quando Steve Jobs voltou, a Apple estava lutando pela própria vida. Mas eu acho que isso era uma característica dele, e que foi transferida para a empresa. Porque ele sempre sentiu que a Apple estava fazendo um grande trabalho, enquanto os outros só lucravam em cima dela. Ele sentia que os outros eram sanguessugas da grandeza da Apple.
Quando o iPhone surgiu, ele era basicamente um brinquedo interessante, porém nada essencial para o dia a dia dos seus poucos usuários. Ele apresentava uma forma nova de fazer algumas das coisas que fazíamos no PC, ainda que de um jeito mais atrapalhado — porém infinitamente mais divertido.
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Era menos eficiente digitar no iPhone do que no PC (e eu diria que ainda é), a tela pequena era pouco confortável para gerar ou consumir profundamente praticamente qualquer tipo conteúdo e, vale lembrar, ele não gravava vídeos, tinha uma internet lentíssima, seu processador era fraquíssimo (afinal, seu chip era adaptado de um tocador de DVDs da Samsung) e a autonomia da bateria era muito inferior à da maioria dos dispositivos com os quais nós estávamos acostumados na época. Ah, sim! E se tivesse dependido de Jobs, a App Store nunca teria existido.
Com o passar dos anos, uma a uma, essas limitações foram se resolvendo na mesma medida em que os nossos fluxos de trabalho (e de vida pessoal) e o próprio mercado foram se moldando para caber no telefone. Ao mesmo tempo, tanto o iPhone quanto o Android foram se blindando para impedir — ou pelo menos dificultar — migrações para a concorrência.
No caso da Apple, todo o ecossistema saiu ganhando. A maré do iPhone também levantou o Mac, possibilitou a criação do iPad, do Apple Watch e dos AirPods, e viabilizou negócios como o iCloud, o Apple Music, o Apple TV+, o Apple Pay, etc. A integração entre o iOS, o iPadOS, o macOS, o watchOS, e até mesmo o tvOS ou o visionOS tornou-se praticamente perfeita e, atualmente, todos trabalham de forma quase milagrosa para entregar a simplicidade integrada que a empresa sempre prometeu.
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Em meio a tudo isso, a Apple passou a levantar as nobres bandeiras da segurança e da privacidade como diferenciais quase exclusivos do seu ecossistema e, sob o manifesto de que “a privacidade é um direito humano fundamental”, funcionalidades como criptografia e proteção antirrastreamento se tornaram um padrão nativo e sem custo adicional. Difícil criticar.
O problema é que, em algum momento no meio de todo esse caminho, a Apple cruzou a linha entre proteger os seus usuários e fazê-los de reféns. Sob o (novamente, sempre válido) argumento de que o mundo é um lugar perigoso e cheio de maus agentes prontos para se aproveitar das pessoas, o iPhone passou a servir à Maçã em primeiro lugar e, depois, aos seus usuários.
Falo, por exemplo, sobre ser impossível que um acessório inteligente se conecte ao iPhone da mesma forma que um acessório nativo da Apple consegue fazer. Quem tem um iPhone e já tentou usar um concorrente do Apple Watch ou dos AirPods sabe do que estou falando.
Mas e no caso de acessórios os quais a Apple sequer oferece (ou tenha planos de oferecer) um concorrente direto?
Do insosso Samsung Galaxy Ring aos interessantes Ray-Ban Meta AI Glasses e, passando até mesmo pelos natimortos Ai Pin 7 e rabbit r1, será que a melhor alternativa para os usuários da Apple é apenas torcer para que um dia ela resolva entrar nesses mercados para que seus usuários também possam tirar proveito de algo que já é possível? É em situações assim que o argumento recorrente de que o controle extremo da empresa está estancando a inovação e prejudicando os próprios usuários começa a fazer sentido.
É claro que esse não é um problema fácil de resolver. Abrir mais o acesso ao iPhone significaria, necessariamente, expandir a superfície de ataque à qual todos os usuários já estão expostos. Quando você tem mais de 1,5 bilhão de pessoas usando o seu produto, por menor que seja a porcentagem de pessoas pouco técnicas ou instruídas, ainda assim esse número sempre será gigantesco.
Porém, mais e mais, a ideia de que precisaremos sempre torcer para que a Apple enfim decida entrar em um novo mercado ou lançar um novo produto para que nós possamos aproveitar os benefícios (e apenas os benefícios que ela escolher por nós) de uma nova possibilidade tecnológica é algo que tem parecido cada vez mais ultrapassado e não-escalável para o cenário atual e futuro da tecnologia — e da própria Maçã.
Resumo da ópera
É óbvio, óbvio, óbvio que o iPhone não é um bem público, que deva ser disponibilizado gratuita e voluntariamente pela Apple, para ser explorado livremente por quem quer que seja. Não é o que estou dizendo e, tentar reduzir o argumento a isso não evolui ou enriquece o debate 8.
Mas é inegável que o smartphone como categoria de produto tenha se tornado uma parte absolutamente essencial 9 do cotidiano moderno, em uma escala totalmente inédita. Não há nada no mundo que centralize tantas funções, tanto poder de fogo, e tantos dados relevantes de cada usuário em um formato tão portátil e eficiente quanto o smartphone. Aliás, dificilmente haverá qualquer outro produto assim.
No caso específico do iPhone, com as óbvias ressalvas de segurança 10, é um enorme desperdício impedir a exploração de todo esse potencial apenas porque a Apple não tem o interesse, a capacidade (ou ambos) para fazê-lo por conta própria. Da mesma forma, ela obviamente teria de ser recompensada por proporcionar essa maior conectividade e acesso às possibilidades do iPhone.
Fazendo uma analogia completamente imperfeita, a essa altura, o sistema operacional de um smartphone é mais próximo de um serviço essencial de infraestrutura de consumo como luz, água, gás ou internet, do que de outros bens de consumo — incluindo o próprio computador.
Em pleno 2025 e, de novo, a analogia é imperfeita, restringir artificialmente um fabricante terceiro de explorar todo o potencial oferecido pelo iOS é como se a sua companhia de fornecimento da energia pudesse decidir quais dispositivos você pode ou não ligar na tomada da sua casa.
Já mencionei que a analogia é imperfeita, certo? Então beleza!
No fim das contas, nem Apple e nenhuma outra empresa conseguirá manter-se permanentemente na vanguarda de extrair o máximo potencial de todos os avanços tecnológicos viabilizados pelos seus próprios produtos, o que é uma pena.
Mas a evolução da tecnologia sempre foi marcada pela abertura, e não pelo estreitamento de possibilidades. Seguir impedindo que outras ideias floresçam simplesmente porque você também não consegue tê-las ou executá-las por conta própria não é apenas mesquinho. É um desserviço à humanidade e um atraso para todos — incluindo para a própria Apple.