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Com Mike Rockwell, a Siri está, sim, em boas mãos. Espero.

Uma versão modernizada, conceito de ícone da Siri em 3D

Enfim, progresso. Há alguns dias, o jornalista Mark Gurman vazou que o CEO 1 da Apple, Tim Cook, havia perdido a confiança no executivo John Giannandrea para liderar a reformulação da Siri dentro da empresa, e que havia passado esse bastão para Mike Rockwell, executivo que supervisionou a engenharia do Apple Vision Pro.

Naturalmente, parte do público leu isso e pensou: “Ué, botou o chefe de um fiasco para comandar outro?”, o que é perfeitamente compreensível.

Primeiro, porque a Apple já esgotou todo o imenso estoque de boa vontade e benefício da dúvida que ela tinha quando o assunto é a Siri — e o mesmo é cada vez mais verdade para a Apple Intelligence, diga-se.

Em segundo lugar, o Vision Pro é um dos maiores símbolos dos últimos anos de um milagre tecnológico que foi lançado para um público absolutamente inexistente para a sua era. Por extensão, a culpa é de Rockwell, certo?

Não exatamente.

Missão dada, missão cumprida

Rockwell se juntou à Apple em 2015, tendo vindo da Dolby Laboratories e, antes disso, da Avid Technology. Imediatamente após a sua chegada, ele passou a comandar uma equipe chamada Technology Development Group (Grupo de Desenvolvimento de Tecnologia), rebatizada recentemente como Vision Products Group (Grupo de Produtos Vision, ou VPG para os íntimos).

Um aspecto interessantíssimo do VPG é que ele não segue a estrutura tradicional que Steve Jobs implementou na Apple há décadas, e que está em vigor até hoje: enquanto o desenvolvimento de tudo na empresa é fragmentado dentre múltiplos departamentos, como hardware, software, marketing, etc., o grupo de Rockwell passou a funcionar em julho de 2023 como uma divisão independente e autocontida, com as suas próprias equipes dedicadas de hardware, software, serviços e assim por diante.

Na prática, isso significa que a Apple passou a confiar em Rockwell a ponto de lhe dar mais autonomia do que tem qualquer outro executivo desse mesmo escalão, e isso é graças ao fato de que, do ponto de vista puramente tecnológico, o Apple Vision Pro ter sido perfeitamente executado dentro do que permitem as leis da Física.

Em outras palavras, se o Vision Pro é um fracasso — e de fato é —, Rockwell tem exatamente zero de culpa no cartório.

A sua missão foi formar e liderar uma equipe para viabilizar a existência de um produto praticamente impossível para os padrões de 2023-24, e foi exatamente isso que ele entregou. Tecnologias essas, aliás, que seguem a anos do alcance e domínio da concorrência 2.

Por outro lado, o Apple Vision Pro foi lançado antes da criação do VPG. Isso significa que todos os outros aspectos não técnicos do produto — e que são responsáveis pelo seu fracasso —, incluindo a pesquisa e o dimensionamento do mercado, as decisões de precificação, a comunicação com o público, a estratégia de lançamento, o absoluto descompasso na relação com os desenvolvedores e a falta de conteúdos imersivos próprios (que seguem vergonhosamente escassos até hoje) não tiveram nenhuma relação com as tecnologias que, sob a liderança de Rockwell, o grupo desenvolveu.

O dele, ele fez. E fez bem!

De olho na Siri

Durante o desenvolvimento do Apple Vision Pro, foi relatado que Rockwell, insatisfeito com a absoluta incompetência da Siri, tentou convencer os executivos da companhia a lhe permitirem reformular a assistente virtual, adotando uma abordagem diferente da que estava planejada.

Não era para menos. Rockwell já havia visto o estrago que a incompetência da Siri havia feito com o HomePod, e não queria sujeitar seu projeto ao mesmo problema. Pensado para ser usado sem mouse e teclado 3, a voz tinha o potencial de desempenhar um papel importante para complementar a interação gestual com o Apple Vision Pro.

Não deu certo. Como o roadmap e a liderança da Siri permaneceram intocados, Rockwell tomou a decisão certa e somente reduziu o escopo do que a Siri faria no visionOS.

Mas ele obviamente não desistiu dessa ideia. Quando Gurman informou, em 20 de março, que Rockwell passaria a liderar o desenvolvimento da nova Siri e que levaria consigo a equipe de software do VPG, ele também disse que isso marcou o fim de uma campanha interna e um processo de transição que levou meses para acontecer, precedendo inclusive o recente adiamento da Siri com IA.

Na verdade, parece cada vez mais óbvio que o adiamento foi uma consequência dessa troca de liderança, uma vez que Rockwell e sua equipe, com olhos mais frescos a respeito do projeto, tiveram a responsabilidade de dizer em voz alta o que a equipe anterior provavelmente já sabia, mas tinha medo de admitir: é óbvio que não daria pra cumprir o que havia sido prometido, e que um adiamento seria menos doloroso no longo prazo do que ter mais um lançamento meia-bomba da equipe de inteligência artificial — embora igualmente vergonhoso.

Agora é com você, Rock!

Atualmente, há muito mais fatores jogando contra Rockwell do que a favor. Primeiro, é óbvio que o fato de ele ter conseguido aliar software e hardware de uma forma tão bem-sucedida no Apple Vision Pro não é garantia de que ele vá conseguir “resolver” a Siri. São problemas completamente diferentes.

Em segundo lugar, “resolver” a Siri significará, necessariamente, ter de trabalhar em conjunto a todas as outras equipes da Apple, ao contrário do esquema de trabalho do VPG. Mas Rockwell evidentemente sabe de tudo isso e, ainda assim, passou anos pedindo para ser colocado para jogo, o que diz muito.

No fim das contas, essa troca de guarda bastante pública da liderança da Siri é uma faca de dois gumes para Rockwell. Ao mesmo tempo em que ele simboliza uma nova esperança para colocar a Siri nos trilhos frente a quase 15 anos de decepção, os frutos do seu trabalho serão analisados sob um microscópio com ainda mais atenção do que antes.

Qualquer problema de percurso, mesmo que ocorra em meio a evoluções significativas em relação à Siri de hoje, será inevitavelmente retratado como o resultado óbvio de “terem botado o cara do Vision Pro à frente da Siri”, por mais raso ou injusto que isso realmente seja.

Fato é que, especialmente ao longo dos últimos meses, Rockwell — assim como qualquer outra pessoa ligada nas evoluções desse mercado que é cada vez mais empolgante — certamente acompanhou de perto os avanços de LLMs 4 com voz e o potencial de aliar isso a capacidades de agentes, e passou todo esse tempo vislumbrando como isso poderia se manifestar na Siri.

Vídeo demonstra o Claude, da Anthropic, interagindo diretamente com o programa Blender para desenvolver um ambiente 3D a partir de um prompt do usuário. Imagine algo assim num Xcode, ou de modo global no Mac para um Photoshop, um Keynote, etc.

Para todos os efeitos, Rockwell conseguiu exatamente o que ele queria. Resta esperar para ver se ele fará jus ao voto de confiança que passou anos buscando, ou se esse capítulo da história da Siri acabará servindo como mais um lembrete dos contos de Aesop, os quais dizem que é melhor ter cuidado com o que se deseja, porque pode se tornar realidade — o que de quebra e, considerando o contexto, valerá para nós também.

Notas de rodapé

1    Chief executive officer, ou diretor executivo.
2    Parte disso, vale registrar, vem da evidente falta de um mercado grande o suficiente que justifique esses investimentos.
3    Embora seja compatível com os periféricos.
4    Large language models, ou grandes modelos de linguagem.
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