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Do Bard ao topo: o que a Apple pode aprender com a recuperação do Google no mercado de IA

Gemini

Ao longo do último mês, nenhuma outra empresa chegou perto de anunciar tantas novidades e avançar tanto as suas funcionalidades de inteligência artificial já existentes quanto o Google.

O curioso é que, assim como é o caso da Apple, o Google também esteve bem atrás de concorrentes como a OpenAI, a Anthropic e a Perplexity, deixando muitos em dúvida sobre a sua capacidade de reagir.

Da patinada inicial com o Bard e o Duet AI, aos primeiros dias de desempenho risível das Visões Gerais criadas por IA, o Google parecia dar passos largos em direção à confirmação de que ele seria mais uma vítima do dilema do inovador.

Não foi o caso.

Atualmente, o Gemini 2.5 Pro está há quase um mês no topo do benchmark LM Arena, apesar de ser somente uma versão experimental. O Notebook LM é, de longe, a ferramenta multimodal mais poderosa de organização e exploração de anotações. Os modelos Veo 2 e Imagen 3 estão bem à frente do Sora e até mesmo do novo gerador de imagens do ChatGPT. O recurso Deep Research, agora apoiado justamente no Gemini 2.5 Pro Experimental, tem trazido resultados mais completos e úteis do que as ferramentas de pesquisa profunda do ChatGPT e da Perplexity. Juntas!

Compilação de vídeos criados com o modelo Veo 2.

E esses são somente os produtos que já estão nas mãos de nós, usuários finais.

Para os desenvolvedores, vimos recentemente um tsunami de excelentes novidades serem anunciadas durante a Google Cloud Next 2025. Somando isso às boas expectativas para o que está por vir na Google I/O, em maio, a companhia de Mountain View tem aumentado a sua vantagem em relação ao pelotão de elite do mundo das IAs — pelotão esse que, como sabemos, já estava umas três ou quatro voltas à frente da Apple, para começo de conversa.

Mentira. Essa comparação é injusta. A Apple ainda está escolhendo o tênis.

Google Cloud Next 2025

Se você não conhece a Google Cloud Next, essa é uma conferência anual da empresa voltada a profissionais de TI, desenvolvedores e empresas parcerias (ou potencialmente parceiras), com anúncios de produtos e serviços obviamente baseados na estrutura de nuvem do Google.

Foi nela que a companhia anunciou o Anthos em 2019 (e sua evolução, o Google Distributed Cloud, no ano seguinte), o BigQuery Omni em 2020, a Vertex AI em 2021, e assim por diante. Tudo isso anos antes do ChatGPT, perceba.

Na edição mais recente, é claro que não faltaram soluções e produtos ligados a IA. Na verdade, todas as novidades tiveram alguma história de IA 1.

Fato curioso: o termo IA foi mencionado 111 vezes ao longo do evento. Já “agentes” e derivados (agente, agêntico, etc.) foram mencionados 142 vezes. O futuro sobre o qual escrevi em janeiro do ano passado está próximo.

Ao longo da keynote, não faltaram anúncios que, se tivessem vindo da Apple, poderiam ser recursos nativos bastante úteis para desenvolvedores de apps para iOS e macOS; coisas como o suporte a modelos de imagem, vídeo, voz e geração de músicas no Vertex AI, ou então o protocolo aberto Agent2Agent, que fará o meio de campo para integrar funcionalidades de agentes de diferentes provedores e plataformas. E que tal o impressionante Firebase Studio, que já pode ser utilizado gratuitamente por qualquer pessoa, e que faz o recurso Swift Assist que a Apple prometeu em 2024 (e que não foi lançado até agora) parecer primitivo e ultrapassado?

Até mesmo a integração dos recursos de áudio do Notebook LM ao Google Docs, ou então a implementação do Gemini ao Google Sheets, para explorar dados com rapidez e com profundidade, mostram que, com uma boa base, a simples mescla de recursos de IA em diferentes plataformas já é suficiente para destravar possibilidades que seriam impensáveis até poucos meses atrás.

E talvez seja aí que more a chave da coisa toda: uma boa base.

Recentemente, eu escrevi aqui, aqui, aqui e aqui (e, de certa forma, aqui também) sobre como o atraso inacreditável da Apple na disponibilização de recursos úteis apoiados em IA não vem de uma falta de capacidade técnica, mas sim de um desfile de pessoas erradas nos cargos de liderança dos projetos relacionados à Siri e à Apple Intelligence em geral.

Na última semana, fontes do The Information (que, felizmente, andam bem tagarelas ultimamente na intenção de responsabilizar publicamente as pessoas certas pela situação desastrosa) confirmaram essa premissa, detalhando bastante alguns dos problemas que elas vieram enfrentando nos últimos tempos:

[…] um fator igualmente importante foram os conflitos de personalidade dentro da Apple, segundo várias pessoas que trabalharam nos grupos de engenharia de software e inteligência artificial. Mais de meia dúzia de ex-funcionários da Apple que integraram o grupo de IA e aprendizado de máquina liderado por Giannandrea — conhecido como AI/ML — disseram ao The Information que a má liderança é a principal responsável pelos problemas de execução. Eles apontaram [Robby] Walker 2 como alguém que carece tanto de ambição quanto de disposição para correr riscos ao projetar versões futuras do assistente de voz.

Essa matéria é uma fonte riquíssima de informações para quem já desconfiava, mas quer entender melhor a profundidade do impacto que a incompetência da (falta de) liderança atual dos projetos de IA tem causado nos produtos que… bem, não chegam às nossas mãos.

De projetos duplicados e sobrepostos a decisões contraditórias entre equipes e, passando até mesmo por táticas para suplantar esforços entre times concorrentes (que, em uma situação funcional, seriam complementares), a matéria deixa poucas dúvidas sobre como teria sido impossível a Apple entregar qualquer coisa que ela própria havia prometido na WWDC24, considerando que ela sequer conseguiu estabelecer uma base sólida para apoiar todos esses seus recursos.

Craig Federighi com várias imagens da Apple Intelligence ao fundo
Imagem: Fast Company

Olhando para tudo o que o Google vem lançando ultimamente, ainda dá tempo de dizer que há esperança para a Apple. As mudanças recentes e a centralização dos recursos da Siri e da Apple Intelligence nas mãos de Craig Federighi e Mark Rockwell são, no mínimo, um sinal decisivo de reação em comparação ao ano de caos que levou a Apple a, ao mesmo tempo, não sair do lugar e ficar ainda mais para trás no segmento de IA do que ela estava na WWDC do ano passado.

Resumo da ópera

Ao longo dos últimos dois anos, ao mesmo tempo em que deu muitos passos iniciais em falso (e de maneira bastante pública), o Google parece ter trabalhado furiosamente com um objetivo bastante claro em mente: desenvolver o melhor modelo fundacional possível, versão após versão, e de uma maneira bastante acelerada.

Paralelamente, as equipes de produto do Google passaram esse mesmo tempo buscando ir além da incorporação superficial das possibilidades abertas por LLMs 3 e por outras manifestações de IA generativa em suas próprias ferramentas e, somente agora, dois anos depois, estamos vendo os frutos desse compromisso.

É verdade que o Google tem tantos produtos e tantos projetos com tantos nomes diferentes, que fica praticamente impossível entender o que funciona onde? Sem dúvida. O Google sempre foi muito ruim disso. O próprio Google Cloud Next é prova de que a quantidade de ferramentas parecidas, mas diferentes, que tem saído de lá é maior e mais confusa do que qualquer ser humano teria a capacidade de acompanhar ou de assimilar. Na Google I/O, certamente não será diferente.

Mas as ferramentas têm saído de lá. Elas estão na rua e, pouco a pouco, fica cada vez mais fácil até mesmo para o Google entender quais possibilidades abertas por quais IAs funcionam melhor em quais produtos, como é próprio caso das novidades no Docs e do Sheets supracitadas.

Coisas assim no Numbers e no Pages são inevitáveis? É claro que sim. Mas será que para a Apple, o processo precisaria ter sido tão doloroso e vergonhoso?

No fim das contas, o caso da recuperação do Google no mercado das IAs serve como uma fagulha de esperança para a Apple. Não será hoje, nem amanhã. E provavelmente exigirá mais mudanças estruturalmente profundas do que um tapa na mão de um executivo e a realocação do seu projeto para outra pessoa.

Mas, se o Google provou algo nos últimos meses, foi que tropeços públicos não matam uma empresa. Na verdade, eles podem servir como um grande incentivo, desde que a empresa seja honesta consigo mesma e não tente fingir que eles não aconteceram.

Notas de rodapé

1    Prato cheio para quem quer ignorar que existe demanda e oportunidade para essas soluções, e se limita a disparatar a coisa toda como irrelevante. O agravante é que, em breve, essas pessoas estarão sem trabalho e com ainda mais tempo livre para aporrinhar o resto de nós.
2    Líder da equipe da Siri.
3    Large language models, ou modelos de linguagem em grande escala.
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