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Mark Zuckerberg é covarde, mas não é burro: a mudança da Meta só surpreende a quem não aprende com o passado

Na manhã de 23 de novembro de 2024 (um sábado), publicamos um artigo meu intitulado “Mais quatro anos de Donald Trump significam mais quatro anos de Tim Cook”, no qual eu disse que nenhum outro executivo do Vale do Silício passa perto da saber acomodar os caprichos de um presidente que só governa para si, sem abrir mão dos próprios princípios.

Além de ajustar as minhas expectativas sobre o prazo da troca da guarda na Apple sob o novo cenário, eu apresentei um resumo das formas como Cook soube agir para proteger os interesses da Apple ao longo do primeiro mandato de Trump, porém sem vender a alma ao longo do caminho. De quebra, dado o sucesso da estratégia, eu disse que o resto do Vale do Silício inteiro provavelmente iria copiar as manobras de Cook para sobreviver aos próximos quatro anos de caquistocracia cleptocrática.

Lá pelas tantas, falando sobre investigações promovidas por órgãos regulatórios dos Estados Unidos contra as gigantes de tecnologia, eu escrevi o seguinte:

É claro que, no caso de Trump, essa relação tende a ser mais corrupta e menos calcada apenas na versão republicana do livre comércio: Trump não faz questão de esconder (e, na verdade, se esforça para deixar claro) que suas decisões são tomadas na base da ameaça e da vingança, ou então da retribuição a demonstrações de submissão e de lealdade.

Pois bem. Durante a tarde daquele mesmo sábado, foi interessante ver no New York Times um artigo intitulado “Agenda de comércio de Trump pode beneficiar aliados e punir rivais”, com o subtítulo “Donald Trump tem um histórico de isentar fiscalmente empresas aliadas. Empresas mais uma vez fazem fila para tentar influenciá-lo.”

Já no dia seguinte, o Wall Street Journal publicou a matéria “Como Tim Cook decifrou o código de trabalhar com Trump”, a qual tinha o seguinte subtítulo: “A eleição está levando ao retorno do lobbying feito pessoalmente por CEOs, na esperança de desenvolver laços com a nova administração”.

Tudo isso para dizer o quê? Que, por mais que seja óbvio para o mundo inteiro que concessões a Trump sejam um grande teatro, todos os envolvidos sabem que a peça precisa ser interpretada à risca da mesma forma. Afinal, uma arma na mão de um macaco ainda é uma arma.

Dobrando a Meta

Com tudo isso em mente, não foi exatamente uma surpresa quando, na última terça-feira (7/1), Mark Zuckerberg anunciou um sem-fim de mudanças nos termos de uso de suas plataformas, feitas sob medida para umedecer o futuro presidente e outros pombos enxadristas.

Do fim de uma estrutura própria de verificação e sinalização de fatos à realocação da equipe de moderação para o estado nada tendencioso do Texas 1, passando pela remoção de restrições de discurso para assuntos como imigração e identidade gênero, Zuckerberg empacotou a nova fase com o belo laço da versão de liberdade de expressão que celebra a violência e a intimidação como pilares democráticos.

Sempre bom lembrar | Imagem original: xkcd

E por que essas mudanças não foram exatamente uma surpresa? Bem, para começar, porque o próprio Zuckerberg já havia telegrafado [PDF] que ela iria acontecer.

Em segundo lugar, porque Zuckerberg foi um dos primeiros a dar um dote de US$1 milhão para o comitê da posse de Trump, a exemplo do que outros CEOs se viram, digamos, incentivados a fazer nas últimas semanas. Afinal…

[…] no caso de Trump, essa relação tende a ser mais corrupta e menos calcada apenas na versão republicana do livre comércio: Trump não faz questão de esconder (e, na verdade, se esforça para deixar claro) que suas decisões são tomadas na base da ameaça e da vingança, ou então da retribuição a demonstrações de submissão e de lealdade.

Depois, porque na véspera da comunicação das mudanças, Dana White (CEO 2 do UFC) foi anunciado como novo integrante do conselho de administração da empresa. Quando funcionários da Meta manifestaram decepção na ferramenta de comunicação interna da companhia, citando o caso em que White bateu na esposa em público, os comentários foram deletados. Bela liberdade de expressão.

Por fim, logo no início de janeiro, o executivo Nick Clegg havia anunciado seu desligamento da Meta.

Mark Zuckerberg e Nick Clegg | Foto: Nick Clegg

Vice-primeiro ministro do Reino Unido entre 2010 e 2015 em uma coalizão bipartidária, Clegg se juntou à Meta em 2018 3 para ocupar o cargo de vice‑presidente de relações e comunicações globais. Ele e se tornou presidente de relações e comunicações globais em 2022, e sua experiência como ex-chefe de governo serviu como uma ponte entre a companhia e múltiplas lideranças mundiais nos últimos anos. A discussão a respeito do seu desempenho fica para outro dia.

Na oportunidade do anúncio de seu desligamento, Clegg disse que seu sucessor, Joel Kaplan, é “claramente a pessoa certa para o trabalho certo no momento certo” — ou, em inglês, “clearly the right person for the right job at the right time”. E ele está certo.

Kaplan, que vinha atuando justamente como VP de relações e comunicações globais, trabalhou na Casa Branca durante o governo de George W. Bush e mantém laços significativos com o Partido Republicano até hoje— há quem diga que o uso repetido da palavra “right” no comentário de Clegg sobre Kaplan tenha sido uma referência a isso.

Brett Kavanaugh | Foto: Jim Bourg/NYTimes

No mês passado, por exemplo, Kaplan esteve com Trump em um evento na Bolsa de Valores de Nova York. Já em 2018, ele marcou presença na complicadíssima audiência do processo de confirmação de Brett Kavanaugh, apontado por Trump para a Suprema Corte dos EUA 4. Kaplan se desculpou posteriormente pela manifestação pública de apoio amigo.

Mas qual é o motivo para essas mudanças?

O motivo não é apenas um, e essa é a questão. Para começar, a Meta está sendo investigada por práticas anticompetitivas pela FTC 5, e corre o risco de ser obrigada a vender o WhatsApp e o Instagram. O julgamento final do caso de monopólio ainda não foi marcado e, com as mudanças da última semana, aumentaram as chances de ele nunca acontecer, afinal…

[…] no caso de Trump, essa relação tende a ser mais corrupta e menos calcada apenas na versão republicana do livre comércio: Trump não faz questão de esconder (e, na verdade, se esforça para deixar claro) que suas decisões são tomadas na base da ameaça e da vingança, ou então da retribuição a demonstrações de submissão e de lealdade.

Em segundo lugar, a Meta vem tentando combater um projeto de lei que a obrigaria a verificar a idade dos usuários para impedir que menores de 13 anos usem a plataforma 6. O projeto de lei é bipartidário, porém, ao tornar a plataforma mais amigável ao recrutamento precoce de simpatizantes do partido dominante, a chance do projeto de lei seguir adiante diminui, afinal…

[…] no caso de Trump, essa relação tende a ser mais corrupta e menos calcada apenas na versão republicana do livre comércio: Trump não faz questão de esconder (e, na verdade, se esforça para deixar claro) que suas decisões são tomadas na base da ameaça e da vingança, ou então da retribuição a demonstrações de submissão e de lealdade.

Em terceiro lugar, Trump diz que Zuckerberg é um dos responsáveis pela derrota nas eleições presidenciais de 2020. Em um livro publicado recentemente, por exemplo, ele escreveu sobre prender Zuckerberg pelo resto da vida a depender do desfecho da eleição de 2024. Aliás, perguntado sobre as mudanças em uma entrevista coletiva, Trump disse que a Meta “melhorou bastante”, e disse que “Sim, provavelmente” as mudanças são resultado das ameaças que o presidente eleito fez contra o CEO da empresa no passado, afinal…

[…] no caso de Trump, essa relação tende a ser mais corrupta e menos calcada apenas na versão republicana do livre comércio: Trump não faz questão de esconder (e, na verdade, se esforça para deixar claro) que suas decisões são tomadas na base da ameaça e da vingança, ou então da retribuição a demonstrações de submissão e de lealdade.

Por fim, esse antagonismo entre os dois se torna particularmente importante quando trazemos o TikTok para a conversa e toda a novela do banimento do app nos EUA — e que eu reafirmo que não tem a menor chance de acontecer. Ainda assim, você consegue pensar em um outro bilionário radicalizado que se tornou uma marionete do presidente eleito em busca de favores e de benefício próprio, e que adoraria comprar o TikTok?

Isso porque, se em 2020 Trump tentou emplacar essa mesma venda ou banimento, agora ele vem tentando impedir que ele seja banido. O motivo? Nas óbvias palavras do próprio Trump à BBC: “Sem o TikTok, o Facebook pode ficar ainda maior, e eu considero o Facebook um inimigo do povo.”

Vale lembrar que “inimigo do povo” é um termo com um histórico bem complicado e carregado, e que raramente é usado por acaso.

Mas você não disse que a Meta havia se consolidado como o porto seguro dos anunciantes?

Sim. E ela havia mesmo! No trimestre passado, ela teve o seu maior faturamento com publicidade até hoje, somando US$39,8 bilhões — um aumento de 18% em relação ao mesmo período do ano anterior.

Vale notar que ela irá divulgar os resultados do quarto trimestre fiscal de 2024 (que engloba justamente o período eleitoral) em 29 de janeiro, e não é uma previsão muito ousada dizer que esse recorde provavelmente será quebrado novamente.

E aqui vai um agravante que não deveria ser uma surpresa para ninguém: Zuckerberg sabe que tanto os usuários quanto os anunciantes não têm mais para onde correr, e que o alívio regulatório resultante do novo cenário fortalecerá ainda mais o seu controle sobre o segmento inteiro de redes sociais, tornando-se inclusive ainda mais atraente para usuários de redutos extremistas concorrentes.

Lembra quando eu escrevi o artigo “Esqueça Elon Musk: o maior vitorioso da eleição de Donald Trump foi Mark Zuckerberg”? Pois é. É ainda mais verdade agora 7.

É inegável que, com mais engajamento nas discussões e com menos supervisão governamental, a Meta ganhe dos dois lados. E o mercado investidor certamente sabe disso, motivo pelo qual as ações da empresa não se comportaram diferentemente do resto do setor de tecnologia nos últimos dias.

Sabe quem caiu depois do anúncio das mudanças? A Trump Media & Technology Group, empresa controladora da Truth Social. Ah, sim, o Rumble (-22,5%) também. E o X teria caído também, se ainda fosse uma empresa de capital aberto.

Resumo da ópera

Desde que fundou o Facebook como uma plataforma para dar notas às bundas das colegas de faculdade (na época, chamada Facemash) com o código supostamente roubado de outro projeto chamado ConnectU, Zuckerberg sempre soube apontar para onde o vento soprou na tentativa de beneficiar e proteger não só a sua empresa, mas a si próprio. A própria estrutura da companhia garante isso, visto que ele tem 51% de representatividade dos votos do conselho. Isso significa que é literalmente impossível demiti-lo da companhia ou votar contra suas decisões.

Quando, em 2021, ele disse que as pessoas “não queriam ver política em seus feeds” e que era hora de “baixar a temperatura”, é óbvio que esse foi apenas o verniz que ele aplicou sobre a própria decisão de moldar a experiência do Facebook para o que era mais vantajoso na relação com o governo da época. É exatamente o caso da mudança da última semana.

Citar um “ponto de inflexão cultural” como o motivo para readmitir violência na plataforma é, nas palavras bastante precisas do jornalista Will Oremus, apenas um “alinhamento de poder da situação”, algo que a Meta tende a “fazer a cada quatro anos”.

O fato de que essas mudanças estão acontecendo às vésperas do novo governo dos EUA não é um sinal de coragem, mas sim da covardia e da capitulação que fazem da Meta uma das empresas mais valiosas do mundo. Elas podem ser decepcionantes ou um sinal de vitória, dependendo do que você acredite. Mas de forma alguma, elas são algum tipo de surpresa. Esse feito, Zuckerberg nunca será capaz de causar.

Notas de rodapé

1    Boa parte da equipe sempre trabalhou a partir de Austin, no Texas. Teatro puro…
2    Chief executive officer, ou diretor executivo.
3    Quando a empresa ainda se chamava Facebook.
4    Dentre outras coisas, com mais de uma alegação de abuso sexual, Kavanaugh teve que explicar por que o fato de ele, bêbado, ter esfregado seu pênis sem consentimento no rosto de uma colega de faculdade não o desqualificava para a Suprema Corte dos Estados Unidos.
5    Federal Trade Commission, ou Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos.
6    Uma lei parecida entrou em vigor recentemente na maior parte dos estados sulistas dos EUA, obrigando a verificação de idade para acessar sites pornográficos. A coisa não deu muito certo.
7    Sim, Musk ficou ainda mais rico. Mas se essa é sua única régua de sucesso, eu sinto muito.
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